quarta-feira, dezembro 31, 2003

Tenciono passar de ano em casa, sossegado.
O "kit" de passagem de ano é composto de 1 ou 2 livros, 1 garrafa de champagne decente, 12 passas de uva, uma pêndula que já marcou a passagem de dois séculos, 1 telemóvel desligado e 1 pequeno banco de onde pularei, com o pé direito, para 2004 (há tempos atrás, numa época de maior indolência, substituí o salto do banco pelo levantar do pé esquerdo à  meia-noite, mantendo o direito em terra. É eficaz, mas abandonei tal hábito, por pouco "sportif"). Costumo temperar esta actividade física (salto, uvas, libações) com três ou quatro resoluções "ano novo, vida nova" algumas tocantemente pueris e que esqueço, de imediato, sem o menor escrúpulo.
Passado o ano, isto é, à  meia-noite e cinco, poderei, auspiciosamente, retomar a leitura do Churchill, do Gilbert, ou de Mme. de Sévigné que tenho estado a ler, ou dar uma volta pelos blogs, adormecer, ver o Big Brother, ou mudar de ideias e sair - ou fingir que vou, afinal, sair. Em suma: fazer o que rigorosamente mais me apetecer.
Bom Ano!

segunda-feira, dezembro 29, 2003

Tinha-me prometido não falar dos "grandes assuntos" e dou por mim a dedicar algum do meu tempo e espaço do blog ao caso Casa Pia. É que nele e por ele veio ao de cima alguma coisa do pior que em nós, portugueses, existe e persiste: primeiro, o desleixo e o deixa andar, as meias-medidas, a indiferença; depois, a reacção das boas almas - algumas delas dificilmente isentas da culpa da omissão - a ostentação de delicadeza de sentimentos - recente; ainda, a falta de rigor, o amadorismo da investigação privilegiando o testemunho, a falta de meios adivinhada, a efabulação infantil que sonha horrores e perversões além das imediatas e visíveis - uma espécie primária de esconjuro - os rigorismos, os exageros justicialistas, anversos e reversos do mesmo subdesenvolvimento.
Convenha-se que não é fácil ficar indiferente.
Prometo calar-me, agora.
É convicção minha de que, a final, haverá absolvições de inocentes. Se este blog ainda existir na altura da sentença voltarei para o "eu bem dizia".

Foi, enfim, deduzida a acusação no processo Casa Pia.
Lembro-me de ler que num acórdão da Relação de Lisboa se fazia referência a dezenas de conhecidas personalidades do mundo do desporto e do espectáculo que teriam sido igualmente nomeadas pelas testemunhas. Será interessante saber o critério que foi seguido para não valorizar os depoimentos relativamente a tais pessoas.
Por outro lado, sabendo-se que as práticas pedófilas na Casa Pia vinham de há decénios, não deixa de parecer muito baixo o número de arguidos, mesmo tendo em conta o prazo prescricional. Sendo minha convicção pessoal que alguns deles estão inocentes, fica-se com a impressão que falta gente...

Foi pedida pelo Ministério Público a prisão do Dr. Paulo Pedroso e do dr. Hugo Marçal, o primeiro mandado libertar pela Relação de Lisboa, o segundo pelo Juiz Dr. Rui Teixeira. Toda a gente sabe que se quisessem fugir já o tinham feito - e com facilidade. Prisão para quê?
Ainda ontem, passei pelo De direita. Deseja que a defesa seja isenta. Quem deve ser isento são os juizes, não a defesa. E as "tropelias" desta já motivaram decisões do Tribunal Constitucional que poderão mitigar a sorte de muito desgraçado alheio ao processo Casa Pia, metido, sem saber porquê e sem que de nada tenha sido acusado, nas enxovias que são ainda as nossas prisões.
Fico estupefacto como passa despercebida a monstruosidade que é o actual código de processo penal, produto genuíno da esquerda e que consagra muitos dos seus mitos.
Pasmo por, aparentemente, não nos sentirmos humilhados com um código que, em termos de liberdade e garantias dos cidadãos, nos coloca atrás de muitos países do 3º Mundo.
O Crítico e o Sex in Lisbon adicionaram o Impensavel à sua lista de blogs.
O Impensável agradece.

domingo, dezembro 28, 2003

Uma pequena volta pelos blogs, neste fim de tarde de domingo.
Ri com as análises certeiras do Mata-Mouros. Por diversas ordens de razões - algumas bastante fúteis, confesso - prefiro Marcelo a todos os outros candidatos. Tem a noção do lúdico, o que me parece muito recomendável num país que, apesar dos dois últimos decénios, continua embiocado em desconfianças labregas, pardo e tristonho. Por outro lado, o problema português parece-me prender-se mais com o que os governos não fazem, por inabilidade, falta de imaginação ou mera cobardia do que com o que possa fazer um presidente irrequieto, mas que não deixa de ser um representante da parte da classe média mais arejada e reivindicativa de modernizações necessárias - junte cada leitor aspas a gosto.

sábado, dezembro 27, 2003

Escrevo sobre o cinzento sereno. Por entre as árvores, ali em frente no jardim, traços breves e fuscos de pequenos vôos. Depois, as casas pequenas. A meio caminho do horizonte, de vez em quando, o ladrar de um cão. Se alguém passasse, o ruí­do dos passos, a janela com luz onde escrevo. Este dia é estas coisas poucas mas é alto o muro que constroem.

sexta-feira, dezembro 26, 2003

Hoje, na taberninha, e deste diminuitivo participa o afecto quanto o rigor descritivo, na taberninha onde todos os dias tomo café e compro pão bem feito - reinava um silêncio quase taciturno e lustral - assim talvez fosse depois dos grandes festins solisticiais e dos episódios de mania dionisí­aca.
Ou a mera mudez embaraçada perante uma pressentida ausência.

quarta-feira, dezembro 24, 2003

A noite cai.
Bom Natal.
Que dia tão bonito, calmo e tão azul.
Na taberninha onde fui comprar cigarros e tomar café - hoje fecha cedo, daqui a pouco - estão à porta a ver este começo de tarde.


terça-feira, dezembro 23, 2003

De regresso.
Receio e expectativas infundadas: todos muito calmos e serenos, com um ar de reflexão - mas não de desânimo - a ver preços.
Distante das visões de há anos atrás, ou da selvajaria tristonha do ano passado.
A verdade fundamental - a crer que há uma - refugia-se num jazer mais fundo e mais dormente, talvez só acessível pela alucinação castorpiana.


O descanso absoluto não existe, tomem-se as precauções que se tomarem. Vejo-me obrigado a sair para ir fazer compras, compras de Natal, ao hipermercado de prov­íncia que frequento. Confesso que a experiência acaba por não ser penosa. A ferocidade com que aquela gente afogueada e ávida enche os carrinhos tem um fulgor de rapina, de repartição de despojos que remete para o sangrento prazer do saque.
E eu, que vou comprar meia dúzia comedida de estilizadas vitualhas acabo por me deixar contagiar, e permito-me o exercício de nostalgias cruas que, se me assustam, não deixam de me alentar.

Adenda ao post anterior: relacionar a degradação dos imóveis com a lei do arrendamento para habitação não é um erro, mas é incompleto: o arrendamento comercial encontra-se nas mesmas condições de iniquidade.
Aos sociológos: seria interessante ver quantos daqueles que interferiram na legislação do arrendamento comercial eram por eles, ou por interposta pessoa - pais, por exemplo - parte interessada na desactualização das rendas...
A história é conhecida: durante decénios - a “coisa” começou com a 1ª república - o estado dedicou-se a brincar com os imóveis dos outros com o resultado que está à vista: as cidades estão cheias de prédios a cair, alguns caem mesmo e, pior ainda, em sítios por onde passam membros do governo, colegas deles de governos estrangeiros e turistas(os nacionais não contam). Em suma: a coisa dá um terrível mau aspecto, é capaz de já ter provocado graçolas em Bruxelas, e o governo, brioso, parece ter resolvido atamancar a situação, para pôr “isto” mais moderno e com um ar de 1º Mundo.
Pensariam os mais ingénuos que, copiando o que se passa lá fora onde costuma ir pedir perdões, mendigar e receber ordens, o governo tentasse, talvez, criar as primeiras condições para a existência do mercado de arrendamento.
Puro engano! Querendo-se talvez vingar das humilhações e vexames que sofre com a gente crescida, em casa gosta de mandar com a prepotência que lhe sobrou dos tempos do Senhor D. José I e de Sebastião. E prepara-se para confiscar os prédios que os seus proprietários, vis mentirosos, dizendo-se totalmente descapitalizados por décadas de rendas de alguns mil réis, juram não conseguir recuperar. Para dizer isso mesmo aos infames, estava há pouco na televisão já não sei quem, a atirar para o género "executiva americana anos 70-80", que explicava como ia ser. Melhor, tentava explicar por que tinha de ser... e tinha de ser por que os proprietários dos prédios, segundo ela, e por motivos desconhecidos - capricho, maldade, adesão a estéticas expressionistas, ou pelo gosto pitoresco da ruína, os não reparam...
Primeiro, rude saloio, pensei que a explicação era desonesta intelectualmente. Depois, reflecti, pensei melhor, que o governo, que é pai, é quem sabe e eu nada sou nem sei. Assim, tomo por boas as explicaçõe governamentais.
Creio, contudo, embora pouco saiba, que posso pedir ao meu governo coerência ( sim, sim, eu sei, estou só a pôr uma hipótese) e pensamento largo: tratando-se de evitar a degradação, porque parar nos imóveis? Comece o governo, que tem prática em desmoronamentos, por se confiscar e vender-se a si e à sua produção legislativa em hasta pública. Eu, que gosto de bric-à-brac, talvez me tente a comprar um despacho, um decreto-lei. Talvez este que se prepara e que é ilustrado com uma desusada e raríssima falta de princípios, de boa fé e bom-senso.


segunda-feira, dezembro 22, 2003

Os portugueses gastam três vezes mais dinheiro com telecomunicações do que com a educação.
Se o tempo gasto ao telefone for utilizado para dar vazão à ignorância pode-se dizer que são notavelmente sucintos.

Pensadamente, desejo a todos um Santo Natal e Ano Novo Feliz.

A imagem fazia parte dos cartões que se usavam para pôr os nomes nos presentes, nos inícios dos anos sessenta (62-63), e que alguém tinha trazido de Londres. Restam alguns que guardei juntamente com outros artefactos natalícios da mesma origem.
À direita da imagem , o "From e o To" que cortei foram as primeiras palavras que soube em inglês.

domingo, dezembro 21, 2003

Foi do modo como a notí­cia foi dada, ou vem do treino em processo penal que adquirimos nestes últimos meses, não passou despercebida a contradição contida no despacho que manda prender um presumido inocente para que este não continue a actividade criminosa. Convirá lembrar, além do mais, que se trata de presumir a actividade criminosa de quem não foi, até hoje, acusado de qualquer crime.
No outro dia, na televisão, alguém que passou ano e meio preso preventivamente antes de ser absolvido - graças a provas que se encontravam no processo e, por tal, acessíveis desde logo a quem o mandou prender - tentava transmitir-nos a leviandade com que se priva alguém da liberdade e se arruinam vidas, às vezes para sempre.
Estranhamente, não vejo muita gente preocupada com o poder-lhe acontecer algo idêntico. O culto do estado paternal - a que continuamos fiéis - privilegia a identificação com o punidor que "protege" os bons e que castiga os criminosos. Em termos mais ou menos disfarçados e sofisticados, todos acabamos por pensar que, se está preso, alguma coisa fez. Vi gente inteligente pôr de lado a hipótese de engano, a mesma gente que sabe e relata casos assombrosos de ineficiência e trapalhice estatais.
E apanhados na teia frouxa de meia dúzia de truques de mau jornalismo eis-nos ao lado do pai prontos a aplicar a sanção. O "respeitinho", o temor reverencial pela autoridade limitou-se, nestes quase trinta anos de democracia a refugiar-se nos tribunais (para quem o parlamento e o governo quiseram, demitindo-se dos seus deveres, passar a devoção).
É interessante, aliás, verificar que, ao contrário do que se passa lá fora - continua a ser "lá fora" - não haja, em Portugal, reflexão teórica sobre o poder judicial, o seu controlo polí­tico - isto é, pelo povo em nome do qual se administra a justiça.
É vocação nossa?
Sem sono, passei a noite de livro em livro. Aqui passei também o meu tempo e reparo que devo ter estado mais de uma hora à  procura da fotografia de um fogão a lenha na net; desdobrei-me em esforços: do Brasil a Inglaterra, passando pelos "forneau à  bois" franceses. Não encontrei, tentei cá em casa e, surpreendemente, passados dez minutos tinha o que queria, o fogão na cimalha do post. Antes de desligar o computador já é dia. Vou dormir agora, a estas horas, e logo será o acordar, já a meio da tarde, ou se tiver sorte, com a noite a cair. De vez em quando, resvalo pela noite, alheio a qualquer preocupação de horas. Das primeiras vezes, a partir das seis impunha-me uma, "mesmo sendo amanhã domingo", no bom-senso cordato e indignado que perpassa a passos miúdos até no que aqui escrevo. Quando acordava, domingo à tarde, mentia-me uma mentira tristonha, vagamente moralizante, como acabam por ser todas: ah! estou engripado, fiz bem em estar na cama, frases destas, apercebendo-me, ainda mais vexado, que a collage com os textos da banalidade, o desejo balsâmico dela, me tornava num ser mais estranho que um mero noctívago que passou a noite em claro a ler...
Agora, resolvida a questão, bocejo de liberdade e o sono vem, pesado e bom. E há que dormir bem.

Por teimosia "gourmet" e "gourmande" de meu Pai manteve-se até tarde o fogão a lenha. Por concessão à  modernidade e creio que ao pessoal, somou-se a esse fogão "a sério", um outro, eléctrico, marca Leão, com um design optimista e sorridente que passou anos de quase inteiro ócio. Quando me desfiz dele, há dois anos, levado pelas exigências das novas receitas, tive pena. A ele devo algumas boas lembranças. A grande alegria que me deu, porém, foi há muitos anos: um choque espectacular e formidável que quase finava uma cozinheira velha com quem eu antipatizava. Lembro-me do alarido e de, passado o perigo, ir espreitá-la à  copa, onde recolhera. Já convalescente, mas ainda combalida, embrulhada num cobertor de papa que exigira lhe trouxessem por julgar a lã bom remédio para os choques eléctricos, bebia chá, assistida pelas "de fora" que a acalentavam assegurando-lhe que tivera sorte em não ter ido desta para melhor.
Mas era no outro, no fogão a lenha, preto, com muitos amarelos que no dia de Natal, logo de manhazinha, estavam os presentes que o Menino Jesus, ajudado pelo Pai Natal lá pusera. Os meus e os das empregadas(os presentes das outras pessoas tinham vindo, por uma deferência do Pai Natal, pela chaminé do fogão da sala). Tudo isto se passava muito cedo, já que o fogão precisava de horas para aquecer. Nunca me deu um prazer comparável ao choque da cozinheira mas, discreto e com uma maldade vagarosa de outras eras, foi ao longo de anos responsável por pequenas queimadelas e aflições que arrancavam sussuradas pragas e aiaiais vivazes. O fogão a lenha, o fogão, por justa antonomásia, não chegou aos meus dez anos. Hoje, se o afã da modernidade o não levara, podia dedicar-me à "cuisine lente".

sábado, dezembro 20, 2003

De pernas para o ar

Disse o Primeiro-Ministro sobre o segredo de justiça:
"É importante termos, nesta matéria, uma lei que seja realmente exequível e cumprida. Uma lei que defenda os direitos do cidadão arguido. Mas uma lei que não coloque nunca em causa e tenha por limite a eficácia e o sucesso da investigação criminal"

O limite da lei deveria ser o dos princípios da decência ou dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos numa democracia, o que vem a dar no mesmo, não o da "eficácia" da investigação.
Quanto ao famigerado segredo de justiça, repete-se que não existe nada de semelhante em Inglaterra, ou nos Estados Unidos ou na maioria dos países da Europa com democracias sólidas. Existe segredo ou discrição na investigação, que é coisa muito diferente e que toda a gente percebe que tenha de existir.
No que respeita aos direitos do cidadão arguido, que neles se inclua o de não poder ser preso sem acusação senão por um brevíssimo espaço de tempo - 3 dias, na Suécia. Que fossem, aqui, 15 dias, cinco vezes mais, em nome do atraso. Ah, e que acabe de vez o escândalo da prisão preventiva.
Não tive uma crise de ingenuidade: sei que pouco, muito pouco irá mudar.
Enfim...

sexta-feira, dezembro 19, 2003

A edição d'Os pobres de que tirei o excerto do post de há pouco tem na contracapa umas palavras de Vergílio Ferreira que vou transcrever: "... A situação particular de Raul Brandão e que o diminui e engrandece, é que toda a sua obra abre para um mundo novo. É o mundo que nos coube, e em que estamos vivendo e de que ele transpôs apenas, em deslumbramento e terror, o incerto limiar.

Creio estar - e um pouco a minha geração, embora só possa falar por mim - também aterrorizado e deslumbrado à  saí­da desses mundos que Brandão vislumbrou.

(Mas o que gosto mais em Brandão, mais do que o tom de iluminura impressionista d'os Pescadores, mais do que o cumprimento da convenção - e da convicção que, por vezes, é a da complacência com ele mesmo - é o descobrir esboços daquele "vôo para baixo" que Vieira dizia Santo António tão bem ter sabido voar)
"Vem o inverno e os montes pedregosos, as árvores despidas, a natureza inteira envolve-se numa grande nuvem húmida que tudo abafa e penetra. As coisas di-las-íeis recolhidas e cismáticas.
É um rolo misterioso e profundo que vem dum mar desconhecido. E a chuva começa, o ruído doce da chuva que faz sonhar em tantas coisas idas e tristes! Primeiro a terra embebe-se e incha. E, depois de cheia, a torrente jorra até polir as pedras: ara, põe raízes à mostra, arrasta na aluvião o húmus, as folhas secas das árvores, os cadáveres dos bichos, os detritos desagregados das rochas, que rola juntos, dispersa e reúne, atira, entre a baba da água para um destino ignoto."

Raul Brandão, Os pobres

quinta-feira, dezembro 18, 2003

Cena familiar


Rendido às alegrias do "upload", e de "template" natalí­cio, procurei pintura portuguesa. Não é a mais bem sucedida das pesquisas, mas há aqui, por exemplo, num dos "sites" mais antigos da net portuguesa, nomes suficientes para nos animar.
A informação, dispersa embora, ultrapassou a escassez irritante de há 3 ou 4 anos, há novidades, mas em muitos casos parece-me que a preocupação em fazer "design web" ou "artweb" torna as páginas pesadas, muito lentas a carregar e a espera - com banda larga... - revela-se ainda pouco compensadora. Os "sites" dos museus nacionais, se não constituem já a desilusão que eram pouco tempo atrás, são ainda pouco atractivos.
De que andava eu à  procura? De uma cena rural e invernosa, portuguesa, como as pintou o nosso naturalismo. Não encontrei. Algumas paisagens, mas todas com bom tempo. No Inverno, estariam os pintores mais no Leão de Ouro do que no campo, o que é muito compreensí­vel. Mas eu queria, por força, aquele campestre em que o olhar tardo e ingénuo do gosto nacional via um Portugal naturalmente feliz. No passeio, encontrei a doméstica "Cena Familiar" da Aurélia de Sousa, um estudo em ocres quase vermelhos, arruivados: da parede côncava - um fogão? - ao cabelo da mãe - concentrada no que faz ou ausente - prolongam-se na filha através do tecido, num tom mais escuro, que aquela segura sobre a coberta esverdeada da mesa. Encarnada escura, a blusa dela e encarnados os sapatos. Perto dos tons encarniçados, ainda, por corada, a outra criança, a loira, e de blusa branca, comunga de um segundo circulo, este claro, que também as une: o pano que a mãe borda - ou passaja - e se destaca sobre o avental escuro, a boneca da criança que nos vira a cara - e que é quem nos expulsa daquela intimidade - enquanto parece falar à irmã (mas dirá alguma coisa? Ou virou-se naquele momento, por outro motivo qualquer?) - que, a ouvi-la, está entre o contrafeito e o aborrecido.
São os jogos de cores, entre os encarnados, vermelhos e ocres e os brancos que no quadro unem aqueles seres, não as expressões, os olhares.
Lá fora, porém, é Inverno, só pode ser Inverno - mesmo que estejam pouco agasalhadas para os frios.

quarta-feira, dezembro 17, 2003



Durante dias, procurei aflito um papel - um pequeno impresso. Revirei gavetas e estantes, sacudi, selvaticamente, livros pelas lombadas, abri outras gavetas, ameacei outros livros, pastas, "dossiers". De puro acabrunhamento, quase soçobrava, envolto em papéis velhos.
Enfim, revoltei-me contra a agitação amargurada, a abundância de falsas memórias - "foi ali que o pus!", - a pletora de hipoteses - "e se o tiver posto ali?" - e resolvi optar por outra estratégia. Hoje, de manhã, três telefonemas calmos resolveram o problema.
A busca era, desde o início, inútil...

Isto não é um novo "template": são as minhas decorações de Natal.

terça-feira, dezembro 16, 2003

O Natal...
Creio que, mesmo antes de ser uma festa cristã, já poderia ser perturbador: instalado no "recolhimento do Inverno" de que falava Rilke, pode ter havido sempre quem achasse o festim prematuro, uma janela aberta de repente que ofusca a escuridão calma, este tempo do passado que o Outono inaugurou.
Feito natal de Cristo, ocasião de júbilo, a ambiguidade acentuou-se, nunca perdida a sua natureza dúplice, fúnebre e de exorcístico desejo de vida. Tradições embutidas no dia-a-dia e hoje perdidas, ajudavam a suportar a luz súbita. Hoje, à falta delas, sobressai a grosseria, o regabofe, na proximidade do insuportável - ou edificado sobre ele.
Por isso, aqueles que suspiram, anseiam, bradam por calma, por paz e não têm medo dos mortos - que, também esses, cada vez mais os há menos - e a quem o destino libertou dalgumas das tiranias do presente, passam o Natal em casa, descansados, abençoadamente sós, ou o mais possível longe da tribu, na paz do Menino Jesus que dorme e sossega do cansaço de ter nascido.

segunda-feira, dezembro 15, 2003

Adormeci ontem cedo, acordei há uma hora, com calor, mas sem sono.
Resolvi madrugar.
O que me levou a Sá de Miranda, não sei.
Fica aqui, presente destas horas, este soneto lindíssimo:


«O sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu, fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!»

domingo, dezembro 14, 2003

Dizia Proust, grande escritor judaico-gaulês, que o que mais o incomodava, ou surpreendia, nos ateus era o serem muito beatos.
E beatos me parecem os dislates de puro autoritarismo com que o estado francês quer proibir qualquer sinal religioso em locais públicos ou, como já me pareceu ouvir, visíveis de sítios públicos.
Neste laicismo republicano não vejo, porém, o mero desejo, ridículo fosse ele, de assegurar uma estrita neutralidade do estado perante as confissões religiosas. O que vejo é a fundação, ou melhor, a refundação de uma nova religião de estado, o "laicismo francês", coroado pelas suas mariannes de gesso.
Sem graça e chatinha e, por isso, muito francesa, terá um futuro promissor por aquelas bandas: os milhares de mortos abandonados este verão nas morgues para não interromper as férias, parecem-me condizer com ela e garantir-lhe o futuro.
Inicio a minha volta pelos blogs e, com os meus lamentos ainda em mente, leio isto: "Mal levantei os olhos, o céu foi riscado por um meteorito."
Os condenados a não ouvirem senão as suas interrogações e aqueles a quem os céus falam com grandiloquência...
Ao longo de dois dias o que fiz foi ver o sol claro do fim do Outono e ler dispersamente Vieira, depois, por ele, Job, " "et carnibus meis saturamini" mas sei, sei que sou eu, algures onde desconheço, quem me come vivo, a divindade triste, hostil, apática que se se farta na minha carne. Não dramatizo, mas não evito o suspiro sapiciencial e de auto-comiseração: contido e creio que quase inaudível, não é defeito que muito me censure e vai com os hábitos pátrios.
Retomarei Job quando me for deitar, lá pelas três e meia.

sábado, dezembro 13, 2003

E entretanto vós, peixes, longe dos homens, e fora dessas cortesianas, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas adentro tendes o exemplo de toda a esta verdade; o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.

Padre António Vieira "Sermão de Santo António aos Peixes"

quinta-feira, dezembro 11, 2003

Relia um post que escrevi há dias e, de repente, reconheço numa frase que escrevi alguma coisa de familiar, não ao quem em mim escreve, mas ao quem em mim lê...
Era a frase "que, de uma forma surda e clandestina, perduram em mim os seus gestos, talvez os seus gostos e os seus espantos." - "post" de 9 de Dezembro.
Veio o calafrio e depois a luz: parafraseia versos do divino Borges, no soneto que dedica aos seus antepassados portugueses.
É dele.
Involuntário embora o roubo - hesito no termo, já que roubar a Borges, está muito acima das minhas capacidades, mesmo que, num extremo de ambição e loucura, o quisera - apresento as minhas desculpas aos meus leitores.
Mejor así.

Eis o soneto de Jorge Luís Borges

Los Borges

Nada o muy poco sé de mis mayores
portugueses, los Borges: vaga gente
que prosigue en mi carne, oscuramente,
sus hábitos, rigores y temores.

Tenues como si nunca hubieran sido
y ajenos a los trámites del arte,
indescifrablemente forman parte
del tiempo, de la tierra y del olvido.

Mejor así. Cumplida la faena,
son Portugal, son la famosa gente
que forzó las murallas del Oriente

y se dio al mar y al otro mar de arena.
Son el rey que en el místico desierto
se perdió y el que jura que no ha muerto.



quarta-feira, dezembro 10, 2003

Links repostos.
Mas vi-me em palpos de aranha para pôr tudo mais ou menos como estava...
A internet é um lugar de eleição para ilustrar a tese que sustenta poder o apocalipse acontecer por pequeninos e desajeitados erros.
Links

Um pequena catástrofe apagou os links que constavam deste blog. Serão repostos o mais cedo possível.

Pearl Harbour

Há anos encontrei numa estante mais esquecida um livro sobre o ataque japonês a Pearl Harbour.
O autor, que vivia na Puhahou Street, em Honululu, resolveu contar o que viu nesse dia de Dezembro, fez, há três dias, cinquenta e dois anos.
O tom é este:
"O sr. e a sra. Frear, com quem vivo na rua de Punahou, já estavam sentados à mesa quando regressei [do quiosque onde tinha ido comprar o jornal naquele domingo de manhã]. Dei o jornal ao sr. Frear, que nos leu os últimos escandalozinhos, enquanto comíamos os nossos pastéis folhados e o presunto. Os divórcios eram muito numerosos em Honolulu, agora, ia ele lendo... Leu, depois, que nós devíamos enviar lâminas de barba para os soldados britânicos, porque havia falta de aço, e nada satisfazia mais os Tommies do que uma barbeadela a preceito. O estrondear, lá fora, continuava.
Yamato entrou a correr:
-Muitos aviões lá fora! - exclamou êle.
- Venham ver!
Guiados pelo pequeno japonês, fomos até à porta de entrada. Vimos uma esquadrilha de aviões, lá muito em cima. Sôbre Pearl Harbour via-se o céu salpicado das pequenas nuvens de fumo dos canhões anti-aéreos.
- Assim é que é - disse o sr. Frear.- Temos de estar preparados para o que der e vier.
Miss Claire, a nossa vizinha, que em tempos fora professora da Escola de Punahou, onde ensinou a ler os avós, pais e filhos da cidade, entrou a correr em nossa casa.
- Estamos a ser atacados! Os japoneses estão a bombardear Oahu! - disse ela, olhando comprometida para Yamato e para Hatsu a pequena espôsa dêste.
- Não! São apenas exercícios. Não se assuste, Claire - disse o sr. Frear e todos nós concordámos, convencidos.
A pobre miss Claire retirou-se, certa de que fôra vítima dum boato.
Poucos minutos depois, os factos vieram dar-lhe razão. Quando estávamos a acabar de almoçar, vimo-la novamente a correr através do jardim.
- Se não acreditam, abram a telefonia exclamou ela. quando entrou.
Dei a volta ao interruptor do aparelho.
«Conservem a calma. Oahu está a ser atacada. Não se trata de nenhuma brincadeira»..."

Confesso que a frase sobre a pobre Miss Claire que se retira por se julgar vítima de boato, me conquistou de imediato, a ponto de por muito tempo a usar, com leves adaptações que não a tornavam mais perceptível nem menos disparatada nos contextos em que a utilizava, totalmente a despropósito. Mais do que um "private joke", ou um "inner joke", tornou-se quase num mantra com que pretendia, julgo, aceder aos gozos da boa fé.

Não consegui ainda, mas as releituras, ao longo de anos, contribuíram para que adicionasse o ataque a Pearl Harbour ao rol dos meus agravos pessoais.
Ontem, porém, lia, mais uma vez, o "Pearl Harbour" - que reencontrei durante uma busca que tinha por objectivo o "Diário" de Stendhal - e apercebi-me que o livro, publicado ainda durante a guerra, é eficaz, uma bem escrita obra de propaganda: é difícil lê-lo a gente sem se indignar com um acto que, para além das muitas razões que há para o repudiarmos, é aqui apresentado como perturbador do nosso direito à placidez do dia-a-dia de pessoas de bem. É dirigido ao que há em nós de mais adverso à heroicidade, ao poderoso e intricado nó de preguiça frouxa que preside ao quotidiano. E ameaçando aí, no cerne mesmo da letargia, transforma-nos em candidatos a soldados audazes e implacáveis.

Impressionado, resolvi saber quem era Blake Clark, o autor. Fiz uma pesquisa no google. Depois de muito trabalho - o primeiro nome dele era, afinal, Thomas - descobri que foi professor de literatura inglesa na Universidade do Hawai, o cargo que detinha na altura do ataque, tendo pertencido depois ao OSS; de 1944 a 1970 foi um dos editores da Reader’s Digest . Ao contrário do eu que supunha, a ascensão aos Elíseos, que eu colocava no decénio de 70, deu-se este ano, em Fevereiro, aos 95 anos.
Não deixei de me assustar por ter vivido tanto o homem que, com 90 páginas de prosa perfidamente cândida e alguns truques velhos, me levaria a arrastar-me para as traiçoeiras praias do Pacífico, em defesa da pacatez que encarna em folhados de presunto e almoços sem horas.

terça-feira, dezembro 09, 2003

Creio que é Yourcenar que nos alerta para a importância da genealogia dos actos: o abater da árvore, o esculpir da madeira, os gestos do trabalho do marceneiro de que nasceram esta cadeira, esta mesa, aquele armário. Em Portugal, onde se tem saudades até do que nunca se conheceu ou aconteceu, creio que esse exercício é comum, embora se torne, as mais das vezes, e ao contrário do que a escritora pretendia, num exercício de meras e fúteis conjecturas.
Ora, hoje acordei cedo, de madrugada e deu-me para investigar gavetas. Numa, e inesperadamente, vi o fac-símile do assento de baptismo de um antepassado meu, datado dos finais do séc. XVIII. Dei por mim a interrogar-me sobre qual seria o estado de espírito dos intervenientes que o assinavam. Não era difícil atribuir uma alegre boa disposição ao padrinho, que assina depois do pároco, numa caligrafia cuidada, o documento do baptismo do seu primeiro neto. Quanto aos restantes, é difícil atribuir-lhes mais de que a alegria amável própria da ocasião.
Abandonei, por isso, esse caminho perigoso e perguntei-me antes que horas seriam, como estaria o tempo, quais as palavras do dia a dia que se infiltrariam naquela ocasião solene: com que palavras se queixariam de um frio matinal, se frio estava naquele dia do início de Maio de 1796, ou que o que diriam à mesa, em voz baixa, ao comensal do lado e, de algum modo, percebi que é ao desconhecimento dessas palavras, hoje talvez estranhas, por desusadas, que devo o poder traçar, suportavelmente, o traço ténue até àqueles convivas distantes que, de uma forma surda e clandestina, perduram em mim os seus gestos, talvez os seus gostos e os seus espantos.
(vd. post de 11 de Dezembro)

segunda-feira, dezembro 08, 2003

Dia de Nossa Senhora da Conceição, Rainha e Padroeira de Portugal.

E antigo Dia da Mãe: lembro-me de, no jardim-escola, fazer umas dobragens que, depois de coladas em papel de lustro, seriam o presente para aquele dia.
As dobragens que fazíamos acabavam por não ser as utilizadas. Eram outras, idênticas, feitas pela educadora, para ficarem bem perfeitinhas, que acediam às honras do papel de lustro.
O naïf ainda não entrara na moda.

domingo, dezembro 07, 2003

Corrigi duas vezes o "post" anterior: uma gralha e um fecho de parêntesis que faltava.
Atenção excessiva para meia dúzia de leitores.
Se fosse apenas um, um único leitor, estariam justificadas as minúcias.

sábado, dezembro 06, 2003

Há pouco escrevi um post a propósito de uma reportagem na Sic sobre crimes sexuais nos Açores.
Apaguei-o depois, por ter prometido a mim mesmo que não me deixaria influenciar pelos "shares".
Opto por falar daquilo que a entrevista não fala, mas deixa supor:
que havia, quase à  vista de todo a gente, prostituição homossexual juvenil nos Açores; que havendo prostituição juvenil há actos sexuais de relevo com menores, o que é crime, pelo menos, desde 1998; que é difí­­cil supor-se não haver chegado dela nenhum rumor, nenhuma notícia, mesmo por uma conversa de café - isto em terras pequenas - a nenhum polícia, a nenhum membro do ministério público, a nenhum magistrado que, todos eles estão obrigados, por lei, a agir, tratando-se como se trata, de um crime público.
Causa estranheza.
Isto, por um lado.
Por outro lado, e para reflexão:
O teor das entrevistas das alegadas testemunhas/ví­timas é de molde a que os eventuais infractores nelas se reconheçam e se saibam denunciados. Ninguém parece importar-se que, de sobreaviso, tenham tempo de destruir todos os indí­cios e provas que os incriminem de forma mais efectiva do que a sempre falí­vel prova testemunhal (nesta fase se imporia o segredo de investigação - e não mais tarde, e contra arguidos que, além de presumíveis inocentes, o podem realmente ser, o "segredo de justiça", sobretudo quando entendido, como o tem sido pelos juízes portugueses, em termos que, além de ilegais, por inconstitucionais, atentam contra princí­pios elementares de decência).
Parece que também ninguém se preocupa quanto ao facto de que o contado nas entrevistas, mesmo se verdadeiro, possa, involuntariamente, que seja, lançar suspeições sobre pessoas que nada tenham a ver com o assunto, mas que, por qualquer motivo - sí­tios onde morem, modelos de carros, etc - se possam enquadrar nas descrições.


quinta-feira, dezembro 04, 2003

4 de Dezembro de 1980

Faz hoje anos que morreram Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa.
Tinha uma grande admiração e simpatia por ambos e estou convencido de que Portugal seria melhor hoje, se ambos estivessem ainda vivos.
E que mais dizer?
O "depois de jantar", outrora um agradável tempo de reverente reflexão, propício à conciliação entre as várias correntes de opinião que se haviam manifestado ao jantar, acabou. Acabou, por ter desaparecido a ceia - pelo menos enquanto instituição quotidiana. E sem ceia (e não se confunda ceia, mesmo a mais modesta, de chá e torradinhas, com o "ir comer alguma coisa", que a mera necessidade de "ir" impossibilita desde logo qualquer comparação) sem ceia, dizia, as digestões hodiernas do jantar não possuem já aquela absoluta serenidade que nascia da junção, num mesmo bem-estar ecléctico, da antecipação com a plenitude.
Embora não tenha vivido, fruto da pouca idade, na época esplendorosa da ceia, conservo memórias que o meu desgosto inventou; e do que verdadeiramente vivi, há o suficiente para lidimamente me lastimar deste ingrato e assimétrico hiato que é hoje o "à noite".
Assim, quando não me apetece ler e não é noite de Big Brother, dou uma olhadela aos blogs.
E o que tinha perdido: desconhecia, de todo em todo, o "affaire" Odette. Para além do algum gosto que me dá ver uma militante comunista vestida de "dama antiga"- o que em si, não é uma contradição, mas uma mera comprovação - acho agradável uma atitude que contraria a mesmice.
Do 1º de Dezembro, pouco há. Mas, numa lista dos 40 conjurados (eram perto de duzentos) que encontrei, um nome geralmente menos citado, em lugar de relevo, levou-me a suspeitar. Fui confirmar: tratava-se, de facto, de um caso de favorecimento pessoal: o citado é um antepassado do bloguista.
Aqui e ali, a questão esquerda/direita, uns salpicos de teoria dos fins das penas, onde velhissimas posições são tratadas como novidades, algum consequencialismo em moral; e leves provocações pessoais que, no desconhecimento em que estou de quem são os intervenientes, me escapam.
Meia-noite.
Talvez uma torradinha. Não há é doce de morango...

quarta-feira, dezembro 03, 2003

Quem tem a minha idade poderia subscrever, com poucas adaptações, o que Eça escreve no seu ensaio famoso (1) sobre o Francesismo.
De inglês - ou anglo-saxónico - na minha infância, apenas me lembro dos padrões dos calções, de algumas camisolas, de um ou outro presente comprado em Londres, de alguns enfeites de Natal e do Peter Pan em discos da View Master. Liam-se, contudo, livros infantis ingleses, de Enid Blyton que, segundo uma Irmã Doroteia, continham alguns perigos para a formação das crianças (sic) e qualquer coisa de Dickens (Oliver Twist?).
Tudo o mais, posso dizê-lo, era francês. Em tenra idade fui iniciado em Dumas, Verne, livrinhos sobre a história de França - alguns ilustrando os horrores da Revolução Francesa. Eram franceses ainda os livros de divulgação científica - durante anos folheei "L'aventure de la terre" - e francesas eram as revistas que os adultos assinavam e parte dos livros nas estantes.
Da Inglaterra falava-se do "civismo" que o nosso povo - então mera paisagem - infelizmente não tinha, elogiava-se a educação, os jardins, a "excentricidade".
Foi, porém, com Eça, com o afrancesado Eça que, nos finais da adolescência, iniciei a minha deriva para o outro lado do canal e descobri a cultura e as instituições britânicas.
Hoje, um dos meus hobbies é não gostar da França, embirrar com a França, de Mallarmé a Voltaire - que digo? - a Froissart, uma atitude de rebeldia infantil que não deixo de estimar, menos pelo anti-francesismo em si do que pela pura inconsequência.
Isto tudo para dizer que continuo a visitar sites franceses... e que neste se passam bons momentos.
(1) O Almocreve, num exercício de ingenuidade tocante considera do conhecimento geral a polémica Eça-Camilo. Eu considero que a notíca mesma da existência de Eça e Camilo o não é...
Aproveito para agradecer a evocação da I.S. que me levou a folhear algumas páginas da "Arte de viver" do Raoul Vaneigem

terça-feira, dezembro 02, 2003

MIL MILHÕES DE EUROS

Em escudos, 200 milhões de contos.
É o montante do crédito malparado referente aos empréstimos para habitação, segundo se lê numa notícia do Público.
Resta rezar para que haja alguma retoma interna antes que, por qualquer motivo, o banco central europeu decida subir as taxas de juros.
Seria um interessante encontro com a realidade.
A culpa - há culpa - é dos sucessivos governos que, por omissão medrosa, ou intencionalmente, resolveram liquidar o mercado de arrendamento que, no resto da Europa e do mundo, continua florescente.
A política que conduziu a este estado de coisas apoiou-se em dois princípios - ou melhor, na falta de princípios: o desprezo mais absoluto pela propriedade privada, e no paternalismo intervencionista do estado - à custa alheia.
O estado português parece apostado em entregar os portugueses, desde a mais tenra idade, primeiro na mão dos empreiteiros, depois na dos bancos, a quem ficam endividados por 20,30 ou 40 anos. Cimento e dinheiro fácil para o sector financeiro, com garantias reais (a hipoteca), eis o retrato de parte do "desenvolvimento" português.
A política do arrendendamento originou outras consequências catastróficas: os centros antigos das cidades não foram renovados e encontram-se em estado de ruína e despovoados: perderam-se memórias e modos de viver e um precioso património - já que não há dinheiro para a restauração dos imóveis.
Conseguiu-se, ainda, empobrecer parte da classe média, que se viu obrigada a vender, barato, imóveis que davam prejuízo, favorecendo as grandes empresas que os compram e os mantém como "activos". Quando os restauram, não os colocam no mercado de arrendamento, usam-nos para instalarem serviços, com a cumplicidade das câmaras municipais.
A "nova" "lei do arrendamento" não vai modificar este estado de coisas.
Pormenor interessante, o arrendamento comercial não é alterado, contribuindo para que o comércio viva numa situação de "dumping", o que permite a sobrevivência de empresas mal geridas. Pouca gente sabe que há lojas famosas em Lisboa - e noutras cidades, país fora, a pagar rendas inferiores ao valor que um casal da classe média tem de dispender na prestação mensal de um apartamente de 4 assoalhadas a 30 km de Lisboa... que há bancos que pagam pela renda das suas agências na província 20 e 30 contos. Pouca gente sabe que o governo não tenciona modificar esse estado de coisas, talvez por lhe parecer que tudo está bem, ou meramente para não ter aborrecimentos.
Estas legislações não se traduzem apenas num despudorado e verdadeiro confisco para os proprietários - o que, por si, nos deveria fazer interrogar sobre a democraticidade dos nosso estado e da nossa sociedade - elas moldam as nossas cidades e os nossos quotidianos.
Parece, contudo, que não são um assunto discutido ou a discutir. Talvez por mera ignorância, talvez por não serem "fashionable", nunca encontrei, nos blogs que leio, por exemplo, a menor alusão ao assunto. Os bites são gastos, por vezes, em materias secundaríssimas e momentâneas, irrelevantes na sua maior parte, com a profundidade de uma pequena e citadina poça de água.
E no entanto... pouco há de mais elucitadivo sobre o modo como o papel do estado foi e é encarado em Portugal, sobre as concepções económicas veramente vigentes, sobre a diferença entre declarações de "aggionarmento" e a prática, onde o atraso sobrevive, se perpetua.
E sobre nós, todos perto ainda do bocadinho de terra, e de medos ancestrais de misérias rurais, da falta de uma telha - e que resolvemos do pior modo.
Talvez por isso, subsista, para espantar medos e memórias, esta falta de cosmopolitismo que consiste na preferência e no entusiasmo pelo longínquo, em detrimento do que nos rodeia e directamente nos afecta e nos diz respeito.

segunda-feira, dezembro 01, 2003

1º de Dezembro

A manhã soalheira e fresca de Lisboa, os ânimos intimoratos, a surpresa, a cortesia impertinente para com uma senhora, o traidor defenestrado, o emissário que parte para Vila Viçosa a avisar o Rei novo
Assim, como me foi contado, ao longo de anos, a façanha ágil talhada no gume exacto do destino.

sábado, novembro 29, 2003

Ao contrário do que se diz, não acho que os portugueses trabalhem pouco:trabalharão mal, de um modo desorganizado e, por isso, trabalharão muitas vezes atabalhoada e desnecessariamente, mas trabalham.
Nas cidades maiores, vivem quotidianos de puro horror, condenados a viagens longas para irem pôr os filhos a creches, jardins-escolas ou escolas, depois para o trabalho, geralmente, em ambientes soturnos.
De há muito que, exceptuadas algumas migalhas de classe média, perderam o hábito de, depois do "emprego", cavaquear um pouco num bar ou num café, de ir ao cinema, ou apenas de passear para "ver montras".
Aqueles que queiram reproduzir quotidianos mais agradáveis que conhecem pela televisão, não têm condições para tal: ganham geralmente mal, as empresas são mal dirigidas - quem se lembra daquele relatório sobre os gestores portugueses? - previlegia-se o "ficar até tarde", o ar atarefado que esteve em moda há alguns anos, na América do Norte. Sucumbe a maioria.
E os mais afoitos que suspiram por um dia-a-dia mais ameno, depressa caem nas malhas da mafia dos "tempos de lazer", que inclui programas culturais, alguns com "motivações" e "animação" para criancinhas (!!!), a "escapadela exótica", com várias horas de avião em classe turística ou, mais domesticamente, "descobertas" de "sabores", de "outros viveres" de "outros tempos": De um modo ou de outro, todas implicam movimentações, balbúrdias, levantares cedo e, na maioria dos casos, maus enchidos ou "souvenirs" etnologicamente correctos, impingidos a preços idiotamente absurdos.
Falo com completo desconhecimento do assunto, senão por vagos relatos que, aqui e ali, e sem qualquer escrúpulo, oiço.

O Impensavel não dá, por isso, quaisquer sugestões para este fim-de-semana prolongado.

P.S. O Impensavel tinha-se prometido, meses atrás, aproveitar os feriados de Dezembro para arrumar umas estantes, mas tratou-se de um dispensável e infantil embuste. Lembrá-lo, eis uma "ocupação" para um fim-de-semana prolongado.

sexta-feira, novembro 28, 2003

O caso Moderna

O Impensavel lembra que no início... No início havia tráficos de armas, maçonarias, tenebrosas conspirações para a tomada do poder, associação criminosa, tráficos de influências, subversão da democracia...
Bem... acabou tudo numas condenações por gestão danosa e alguns crimes de ladroeira comum.
Convirá, ainda, não esquecer, que parte das verbas desviadas foram empregues na compra de carros chamados topo de gama - mas que nem sequer isso são senão para a classe média - e para roupa, não no Poole - onde Eça mandou fazer uns fatinhos, mas nos alfaiates nacionais, que não têm acesso aos melhores tecidos.

No meu tempo, liam-se livros de aventuras, desde Dumas à colecção dos rapazes - de que editora? Esqueço-me e tenho preguiça de ir ver. Quero crer que a geração, ou a meia-geração, abaixo da minha, esta que tanto se entusiasma a descobrir conspirações tenebrosas e ignomínias a cada esquina, leu menos aventuras e que, das séries televisivas, não foram sequer espectadores atentos do Sítio do Picapau Amarelo.
Depois, presas da monotonia, sem defesas, perante a chateza quaotidiana, é o que se vê... surgem cabalas, conspirações, tremendas coisas imaginosas.

quinta-feira, novembro 27, 2003

Ontem dei uma volta pelos blogs, a partir das indicações do Dicionário do diabo - link aqui ao lado.
Visitei o Estrangeirados e encontro, num post intitulado Elogio: "Estou tão contente pela mini-avalanche de visitas nestes últimos dias".
Um português que afirma estar contente, "tão contente" pelas visitas e agradece ainda outras alusões ao seu blog é "avis rara" e merece que se lhe sigam as peripécias em terras estrangeiras.
Já agora e quanto ao rugby: no outro dia lia no Mar Salgado, salvo erro - link ao lado - que o futebol era um jogo de gentlemen jogado por labregos e o rugby um jogo de labregos jogado por gentlemen...

Outro blog que visitei foi o Socioblogue. Esqueçam-se alguns aspectos mais irritantes do vocabulário, os "apelativos" o presentação, sinónimo perfeito de apresentação, e por isso, muito evitável, o mais indesculpável "mostração" ( os neologismos são quase sempre atribuíveis a preguiça e desconhecimento da língua, coisas curáveis) e atente-se, sobretudo, numa genuína boa vontade e esforço do autor.

Revisitei o Flor de Obsessão: durante meses, sempre que tentava aceder ao blog, aparecia-me um post de 30 de Junho, salvo erro, sobre cinema. Lia, por vezes, referências ao Obsessão, ia ver: lá continuava o post do dia 30. Recarregava a página: ainda o mesmo post. Pensei numa mudança de morada, acedia através de "links" de outros blogs, o mesmo post. Desisti. Ontem, sem que nada fizesse, surgiu o blog actualizado (dia 25 de Novembro).
Já agora: também eu tremo com juizes que no CEJ não estudavam - já estudam? - direito constitucional. A necessidade de mudar o modo de recrutamento dos magistrados portugueses parece-me evidente.


No post anterior falo da "noite antiquíssima, rainha destronada"
Mesmo truncada, a citação deveria, por notória, dispensar mais indicações.
É uma imagem de uma extraordinária beleza, uma das mais belas da poesia portuguesa.
Leia-se ou releia-se um pouco mais:

"..............................................................
Vem, Noite antiquíssima e idêntica
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de infinito
..... "
Álvaro de Campos
Ontem a luz da rua colapsou, um breu, como me lembrava era à noite.
E hoje, "parcialmente restabelecida" ainda há o escuro bastante para fulminar todas as metáforas digitais, todos os construídos espantos binários.

Hoje, como ontem, é a "noite antiquíssima, a rainha nascida destronada": morte, silêncio, intactos.

Amanhã, reparada a avaria, volto a ler-vos a aritmética (sépia pálido ou overcoloured).
Sans rancune.

quarta-feira, novembro 26, 2003

Eu já estava convencido, desde há uma semana, que o America's Cup fugira de águas lusas. Acredito mesmo que a fuga de informação terá tido o seu quê de piedosa, conhecida que já deve ser lá fora a nossa propensão para encarar eventos de excepção ( a Expo98, o Euro 2004) como oráculos, prenúncios onde pensamos vislumbrar sinais da terra de leite e mel em que nos havemos de tornar e que, por pecados nossos, oculta, não reconhecemos - cegos! - nas ânsias do dia-a-dia.
É o messsianismo habitual, nada de novo - embora se fale pouco dele.

Conhecida oficialmente a decisão, por sites, blogs e televisões, se dissertou sobre as vantagens da Tramontana e do Levante valencianos sobre a nossa Nortada, vantagem tão clara e proficientemente reconhecida que faria da candidatura portuguesa, no entanto louvada, uma pura leviandade, desde o início condenada ao fracasso. Descontado, porém, esse senão da argumentação, o intento, manifesto ou inconsciente do discurso é hábil: tratar de mostrar que a escolha não se deveu a falhas nossas, mormente de organização, senão às forças incontroláveis - e injustas - da natureza.
Porém, o jornal francês "Le matin" que publicou a triste notícia, não falou das vantagens dos ventos valencianos, sobre a nossa leal Nortada, mas dos protestos dos pescadores de Lisboa que o governo desalojou.
E que hoje, conhecida a decisão, comemoraram jubilosamente, entre gritos de "é bem feita".
Eu, que desde há uma semana perdera a esperança de ver a Cup em Lisboa, acabei por me rir, com gosto.
O Almocreve, já se sabe, não se esqueceu do aniversário de Eça.
Mas, assim como no dia anterior tinha usado o Ramalho para maltratar a Figueira, usou ontem o Eça para.... para... menoscabo do Eça.
É que tudo, menos inocência, há na escolha do texto, uma soberba desanda no Camilo - que a merecia (e no merecê-la, a esta e outras, está ainda muito da sua grandeza irritante).
O Eça não publicou, porém, aquela carta em vida. Foi encontrada entre os seus papéis. Refere-se-lhe, no entanto, numa carta a Luís de Magalhães, de Bristol, datada de 2 Julho de 1887. Transcrevo: "Não sei se Vossê leu nas Novidades uma prosa de Camilo, com phrases muito janotas e arrebicadas, todas pelo figurino de Filinto Elysio, em que elle se queixava ferozmente de mim. Eu respondi-lhe n’uma epistola, destinada às Novidades, que (para ser modesto) não deixava de ter alguma pilheria. Mas era muito longa, toda a lápis, tinha de ser copiada... e não tive paciência de a pôr em tinta limpa: de modo que guardei um discreto silencio" (in Correspondência, carta XXXV)
Com isto, construiu-se sobre Eça um tremendo processo de intenções (como o meu, ao Almocreve...): que ele, José Maria, ao referir-se à carta-resposta dava a conhecer, por um lado, que Camilo não ficara sem uma - e uma resposta que ele, Eça, atenta a sua modéstia ja proverbial, não deixava de considerar com pilheria - e, por outro, não a enviando impossibilitava a fúria camiliana que não deixaria de se abater sobre ele; ainda que, deste modo, lhe ficaria a pertencer, para sempre, como ficou, a última palavra nas difíceis relações que com Camilo manteve. Acrescente-se a tudo isto, a alguma injustiça de que Eça é acusado - com alguma razão - de ter tratado Camilo e obtém-se o quadro sombrio: aquela resposta não enviada a Camilo seria a feia acção de Eça.
É, de facto, difícil atribuir a mera falta de paciência o não ter passado a carta a limpo... sobretudo para os que pacientemente tentam construir um Eça farisaico, dúplice, que não existiu.
Mas, também, não é difícil crer que tenha sido isso mesmo, falta de paciência.
Parece-me ferocidade bastante.

Para conhecer alguma coisa do episódio, aqui está.
O texto póstumo a que se alude não será esta carta, mas outra em que é feito o convite a Camilo para colaborar na Revista de Portugal, enviada já de Paris, em Novembro de 1888 e que, tanto quanto sei, o autor da Corja recebeu.





terça-feira, novembro 25, 2003

José Maria

A dez minutos do fim do dia, ainda tenho tempo de lembrar Eça de Queiroz, que nasceu há 158 anos, no bendito dia 25 de Novembro de 1845.


25 de Novembro

Lembro-me muito bem do 25 de Novembro de 1975.
Nesse ano, tinha aulas só à tarde. Começavam às três.
Acordei não antes do meio-dia, almocei, presumivelmente, num pequeno café-snack da Duque de Loulé, e fui para a Faculdade, no 38.
Chegado lá, avisaram-me que, dada a situação política, havia uma RGA. Devo ter agradecido o feriado à situação política - que desconhecia, ainda, qual fosse - e resolvi entrar no anfiteatro, para fazer tempo para o lanche na Ferrari - batido com creme, sim - onde ia depois das livrarias e de uma espreitadela à Sabóia e à Picadilly.
Percebi, no entanto, mal entrei, que fora um "faux pas": os meus colegas tencionavam barricar-se para se defender da "investida do capital" e das "forças fascistas", tudo isto anunciado com a alegria de quem se tencionava divertir o mais que pudesse. Temi pelo meu batido de morangos com creme e pelos "Les Rois Maudits", do Druon, de que tencionava ir comprar à Bertrand, na edição da "Livres de Poche", o primeiro volume.
Tendo sempre cultivado na faculdade, o mais rigoroso anonimato, saí sem problemas, durante a apresentação de uma moção de caracter ainda mais bélico do que as anteriores.
Lembro-me que fui a pé, aproveitando a tarde agradável, até as livrarias da João Soares e que espreitei a 111.
Não sei já como, apercebi-me - na livraria? - que se passava realmente qualquer coisa, e apanhei o 38 de volta a casa, deixando a Bertrand para outro dia.
Dir-me-à indignada a minha meia dúzia de leitores que tanta indiferença pela coisa pública à saída dos anos teen - à altura, nem sequer existiam, os anos "teen" - prognosticava um cínico, um indiferente. Talvez, já que foi nessa altura que li, com muito espanto e sincera admiração, os meus primeiros Ciorans; todavia, e em nome da verdade histórica, devo confessar que não posso atribuir aos "Précis de décomposition" a falta de entusiasmo pelo que me rodeava. Se calmamente desci - ou subi, segundo alguns autores - o Campo Grande, devo-o a uma leitura de Engels - se bem que já não me lembre qual - a alguns alvitres de parentas velhas que se resumiam, sabiamente, a contar com o cansaço do povo de Lisboa e com o bom-senso do do resto do país e principalmente, à indignação do sr. Gustavo (nome fictício) que um dia, numa conversa de rua, e a pretexto de se interessar sobre "os estudos" me tentou arrancar uma "consulta": o sr. Gustavo tinha arrendado uma loja de um seu prédio ao sr. Lopes (nome igualmente fictício) que abrira uma firma de electrodomésticos. A coisa sempre tinha corrido bem, o Lopes, respeitador, mas, nos últimos tempos - e foi esta conversa antes do verão temível - tinha junto ao prédio uma autêntica lixeira, caixotes de papelão, embalagens de plástico, que tudo dava um péssimo aspecto à propriedade. Tinha já chamado a atenção do inquilino, mas este desculpara-se com o movimento. Umas semanas depois, encontrei, novamente, o sr. Gustavo e perguntei-lhe pelo lixo. Que tinha desaparecido: a venda de fogões, de máquinas de lavar roupa e loiça era tanta, que já não os desembalavam senão em casa dos clientes.
Munido da certeza - que ao tempo, para mim era uma certa certeza - de que não havia "condições subjectivas" para a "revolução do proletariado", acima de tudo ocupado em apetrechar-se para, confortavelmente, poder ver a "Gabriela" sem estar a pensar na loiça suja e na roupa por lavar, passei o resto da revolução sossegado.

E epílogo? Dos colegas da faculdade e adjacências, alguns tornaram-se crónicos frequentadores de S. Bento, das empresas públicas, ou de capital público, do governo. Os amigos mais pessimistas e que me censuravam o optimismo, nas empresas privadas e no governo, juntamente com os "inimigos" de outrora. As parentas foram morrendo, geralmante conciliadas com o país; o sr. Gustavo também morreu, num cruzeiro, durante umas férias. O sr. Lopes é hoje, um potentado, e sensato, "éminence grise" de vários executivos municipais.
Eu continuo com o meu Cioran.
Tenho os números dos telemóveis de alguns dos sobreviventes, para uma aflição.

segunda-feira, novembro 24, 2003

A gente acorda aqui, à beira do mundo "à séria" (o que começa aqui ao lado, em Espanha), numa segunda-feira de manhã, reúne uns esgares de "ora aqui vamos nós", alguma coisa gastos, o sorriso engelhado, mas é o que há, e dispõe-se a encarar uma nova semana de trapalhadas.
Em vão se prepara - e é isto que Portugal tem de bom: é sempre um pouco pior do que aquilo que possamos conceber.
Eu, por exemplo, acabo de ler que o M.P. pede, no caso Casa Pia, exames físicos aos arguidos. Fica-se logo a pensar que raio de investigação é aquela, parece uma coisa conduziada sem método, sem um rumo, aos solavancos...
Eis um exemplo desse pior que nos surpreende.
Contudo, por vezes, raras vezes, assustamo-nos com boas notícias: as perícias médico-legais aos arguidos, efectuadas oito meses depois de alguns deles se encontrarem presos, destinar-se-ão, segundo algumas fontes, a averiguar dos efeitos fisiológicos causados pela reclusão sem culpa formada na saúde dos prisioneiros.
Os resultados serão publicados num importante jornal médico internacional. Do estudo, participam, entre outros países, a Coreia do Norte e Cuba.


quarta-feira, novembro 19, 2003

Eh bien, mais do que o marialvismo, que é, na sua faceta mais agradável, um protesto não tanto contra o "lá de fora" quanto contra o "novo" importado a trouxe-mouxe, irrita-me a quietação, austera, impediedosa e lisa, circunspecta e receosa, quase supersticiosa que, disfarçada de obesa sensatez perdura ainda (1) entre nós em graus que atingem a omissão criminosa.
Isto a propósito da recusa das "salas de chuto" - ou shut ou shoot - nas prisões, ou de um mero programa de troca de seringas.
Há droga nas cadeias, a par de falta de higiene. Por isso, morre gente. Em face da situação, lamenta-se, lamenta-se com convicção e optimismo - uma forma recente de lamúria nacional - e nada se faz.
E contra isto... contra este mau marialvismo, nada a fazer. Ou tudo, em nome da mera decência.

(1) - por vezes sou acometido por optimismos iluministas.

terça-feira, novembro 18, 2003

Há dias li a notícia da morte do recentemente desaparecido Marquês de Marialva e desde aí­ que tenho pensado sobre o marialvismo enquanto "tradição inventada". Também há tempo, não há muito, tinha relido a "Cartilha do Marialva", do José Cardoso Pires, que não achei tão certeira como da primeira vez que a li, e isto por que, salvo erro, são referidos como "marialvas" comportamentos que não são exclusivos do "marialvismo" português: o desdém pela "cultura livresca" é um deles; outro, a adopção de modos de estar e vestir populares, que encontramos, também, na aristocracia inglesa ou na alemã.
Divertido é o facto do Marquês de Marialva, o 4º, que deu origem ao termo, nada ter de "marialva": era um aristocrata de corte, estribeiro-mór de D. José I, e grande equitador quanto estudioso de mérito da arte equestre, o autor da "Luz da Liberal e Nobre Arte da Cavalaria". Como seu Pai, mas da Rainha D. Maria I foi o 5º Marquês estribeiro-mor; anfitrião, protector e amigo de William Beckford que dele fala com simpatia no seu "Diário", projectava o casamento de sua filha, a futura Duquesa de Lafões, com o milionário inglês. Um seu irmão, pelo casamento, Conde dos Arcos, foi o que morreu em Samora Correia, numa corrida de toiros, episódio que Rebelo da Silva aproveitou para a "Ultima corrida em Salvaterra" e seu filho, último marquês em sua Casa, criança ao tempo da estada de Beckford em Portugal, morreu novo e sem descendência em Paris, onde era Embaixador na Corte de Luis XVIII. Foi por uma sua irmã que o tí­tulo entrou na Casa de Lafões, onde hoje se conserva. Mas, o 2º Duque de Lafões, marido daquela senhora e cunhado e genro dos anteriores, neto de D. Pedro II, o primeiro membro da Casa Real que estudou na Universidade do Coimbra, militar e um dos fundadores da Academia das Ciências, foi patrono das artes e conhecido por essa Europa fora como modelo de aristocrata iluminista. Beckford, que lhe foi apresentado, deixou dele uma descrição saborosa e refere-se ao francês requintadíssimo que falava. Sem resquícios de marialvismo, estes marqueses de Marialva...
Dir-se-ia ser um caso, tão comum, de uma denominação originada muito arbitrariamente, ou nos meros feitos equestres dos 4º e 5º Marqueses, não fosse a gente perceber que, com tal escolha de nome, se pretendeu filiar na aristocracia portuguesa - isto é, tornar exemplares - atitudes, em grande parte posteriores, e que lhes eram - e no séc. XVIII, à grande parte da alta aristocracia portuguesa - estranhas: uma, o desdém pelo que vem de fora; a outra, mais positiva, a rebeldia à  imposição de hábitos novos.
Subsistiu esse abuso: o legitimíssimo asco a Pombal, oculto protagonista na cena entre o 4º de Marialva e Sebastião José, no episódio literário de Salvaterra, não tem por causa o ódio ao novo - que, era, aliás, consumido com alguma avidez, mas o asco pelas prepotências da política pombalina.
A esmagadora maioria dos resistentes à  ditadura de Sebastião José foram pais e avós de liberais, mais do que de apostólicos miguelistas.

segunda-feira, novembro 17, 2003

Televisão, bom-senso, etc.

O Dr. Pacheco Pereira repeliu, a golpes de senso-comum e sensato bom-senso, as especulações da apresentadora da SIC, sobre o episódio da jornalista referido no post anterior.
O Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, também em nome do bom-senso, fustigou as propostas de alteração dos mandatos dos deputados.
O siso que qualquer parenta mais velha possuía nos meus tempos de criança é hoje apanágio de muito poucos...

Num outro telejornal, enquanto informavam sobre as interessantes novidades de um cantinho mais escuso do nosso Portugal, em rodapé referia-se uma compilação de "cantigas damigo" (sic).
Pensei primeiro - e indignei-me - tratar-se de um pretensiosismo irmão daqueloutro, ortográfico-hollywoodesco, que na busca do "pitoresco e de "ambientes de outras eras" leva a que se escreva "estórias" por "histórias" e outras semelhantes patetices
Depois, serenei: afinal, a coisa pode ser atribuída, felizmente, à lídima ignorância.
Porque ser pessimista?

Uma gloriosa manhã, branda e suave e más notícias: Valência terá ganho a American's Cup. Lisboa, preterida por greves de cacilheiros e outros estorvos do subdesenvolvimento. Diria que tudo condiz, mas é uma desilusão: esperava ser um mirone competente do acontecimento. Resta-me a manhã, o azul pálido e oiro.

Aproveito a desilusão para me dedicar ao bota-abaixismo.
Vi, na televisão, um documentário sobre os médicos do Leste europeu que emigraram para Portugal. Alguns ainda não podem exercer medicina, devido a obstáculos burocráticos - um exame da Ordem do Médicos é um deles. Eu não sei se os nossos médicos são monstros de sabedoria. O que sei - embora de ouvir dizer, devo confessar - é que os cuidados médicos disponíveis em Portugal, não obstante o dinheiro que nos custam, são mauzinhos e, em parte, por falta de médicos.
Lembro-me de ler, já há anos, num artigo de jornal, que Einstein não poderia ser, à luz da legislação em vigor, professor catedrático em Portugal... O autor pretendia demonstrar o absurdo da lei. Idêntico absurdo é este da necessidade de exames na Ordem para licenciados por universidades europeias - ou asiáticas que integravam a antiga URSS.

Por médicos, um apontamento de puro terror que não foi devidamente notado: a jornalista atingida a tiro no Iraque foi, parece que com seu consentimento, trazida do hospital inglês para o Curry Cabral.
Um gesto de heroísmo ou a mesma candura que a levou às estradas do Iraque sem protecção?
Como se diz agora, aguardo os "desenvolvimentos".

quinta-feira, novembro 13, 2003

e Tarde do dia 13

Oiro, azul e cinza, a nitidez difusa do que é efémero.

Leio o Livro da Sabedoria, uma das leituras da missa de hoje: "Ela [sapiência] é um sopro do poder de Deus, uma irradiação pura da glória do Omnipotente, pelo que nada de impuro entra nela." - todo o saber, mesmo o mais laico, as posições mais cépticas são tributárias desta concepção: o vocabulário "post moderno", rico em metáforas retiradas à patologia, "contaminado" pela exaltação dessacralizadora, é-lhe, ainda, tributário e, assim, todo o discurso sobre o "pecado" da civilização ocidental.

quarta-feira, novembro 12, 2003

Manhã cedo do dia 12

Acordo na vizinhança do silêncio.
O cinzento leve da manhã,
e o vão do frio, um grande arco ogival e translúcido
fingem ruínas que começam - ao longe -
a branda obra das horas.

segunda-feira, novembro 10, 2003

O refrigério de Cioran: "L'envie de devenir source de événements agit sur chacun comme un desórdre mental ou comme une malédiction voulue. La société - un enfer de sauveurs! Ce qu'y cherchait Diógene avec sa lanterne, c'est um indifférant... in "Précis de Décomposition"

Depois, quando fechava o livro, para ir jantar: "La découverte de la Vie anéanti la vie", intróito perfeito ao "Monte dos Vendavais" que tenciono começar a reler, ainda uma vez, hoje à noite.

(Cioran era um leitor entusiasta de Emily Brönte - confirmação, mais de que de uma conjectura, de um pressentimento).



sábado, novembro 08, 2003

Encontrei aqui excertos do Diário de António Ribeiro Saraiva - este senhor. Do que escreveu conhecia um ou dois fragmentos de texto; do homem, menos: do seu longo exílio e da muita idade com que em Inglaterra morreu. Quando hoje à  tarde - que foi uma suave tarde de Novembro - lia as suas memórias - organizadas em entradas numeradas e alíneas - encontrei um romântico - não no incapaz sentido em que se usa a palavra corriqueiramente, mas no de alguém que aderiu ao ideário do romantismo: leiam-se as "anotações inglesas" do Diário e, nelas, atente-se ao seu quotidiano londrino, a alguns assuntos sentimentais, tudo inventariado com uma espantosa modernidade romântica - que o Garrett, de que ele desdenha, por seu turno não desdenharia.
Miguelista e romântico, eis uma "avis rara".

As suas anotações portuguesas fazem dele, "malgré lui", um estrangeirado peculiar, um estrangeirado "inglês" que não quer, ao contrário dos propriamente ditos, "educar-nos" mas corrigir a administração caótica...
E, na entrada 23 a) encontro, implícito na comparação que faz do morgado mau administrador com o "homem lavrador, ou doutra profissão das médias da sociedade" - e não com um qualquer morgado bom administrador... - o explícito programa d' Os Fidalgos da Casa Mourisca - um "inconsciente" gosto pelo "fomento" - perdõe-se-me tanta aspa.
Talvez sem dar por isso, pequeno aristocrata de província, filho de desembargador, intérprete do mal-estar classe média citadina e rural, esmagada entre o povo e a aristocracia de corte que domina na administração e nos cargos palatinos, é, a um tempo, um homem dos grandes ressentimentos futuros quanto do passado que quis preservar.
Estado Novo avant la lettre?




sexta-feira, novembro 07, 2003

O Embaixador de Espanha mandou-nos trabalhar mais e reclamar menos - referia-se aos homens de negócio portugueses, mas adivinha-se a intenção generalizadora.
Na substância tem muita razão - mas não toda - na forma, comete uma grosseria, pior ainda, uma falta de caridade: a realidade e Portugal, dão-se mal, há muito tempo.
Ou dão-se bem - como suspeito - que isto é gente reformada do Império, como dizia o outro, do Império que fomos demasiadamente, por falta de que ser.
Não nos podem, por isso, obrigar a muito.
Paguem-nos a tença - com regularidade - e prometemos subsistir ordeiramente - por mofa e escárnio e desprezo.
Mas apenas isso.
Entretanto, por desfastio desta eternidade regrada e chata, expulse-se o Sr. Embaixador e invada-se Espanha.

O Impensavel agradece

O Descrédito! indica o Impensavel na sua lista de blogs dados à reflexão - processo de intenções não isento de alguns perigos.

Fica o agradecimento, sincero.

Um dia explicarei - explicar-me-ei - o motivo de conhecer mal a obra de Sophia de Mello Breyner.

Mas hoje, destino inteiro do dia dos seus anos, este poema.

Este é o tempo

Este é o tempo
Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam.


Sophia de Mello Breyner
in Mar Novo (1958)

Aqui.

quinta-feira, novembro 06, 2003

No Mar Salgado, FNV fala sobre a desgraça que é a sinistralidade rodoviária em Portugal.
Defendo, sem hesitações, o agravamento imediato e substancial das punições, até às várias dezenas de milhares de euros, consoante os rendimentos de quem prevarica. Creio que a notícia de uma multa de 20 ou 30, 50 mil euros paga pelo Sr. X evitaria de imediato muitos acidentes. Assim fez a Finlândia - e os países nórdicos em geral - com notável sucesso. Lembro-me ainda de ler no jornal que um dos administradores da Nokia pagou 15 000 contos - sic - de multa por uma infracção cometida de bicicleta...
A Finlândia não tem analfabetos nem ileteracia.
Aqui, com analfabetos e gente que chega às faculdades incapaz de compreender o que lê, tenta-se a educação. Tente-se, também. Mas puna-se.
O resto é gastar cera com ruins defuntos.



O Almocreve das Petas, umas das minhas mais diárias leituras, lembra que fez ontem anos que morreu Raul Brandão, uma das minhas descobertas tardias. Lembro-me de, em férias, comprar o Gomes Freire. Matilde de Melo, que, separada de seu marido, acompanha o General ao serviço do exército francês (?, mas tenho preguiça de ir tentar escobrir o livro...), pareceu-me digna de mais notícia.
Noutro registo, o episódio do coleccionador que teme pelos jarrões quando seu caixão descer as escadas e recomenda cuidado tem-me servido para aferir das verdadeiras vocações.
Um dia, contava este e outros episódios das "Memórias" e recomendaram-me muito cuidado no Raúl Brandão historiador. Já sabia: refere factos de que tive, quando em pequeno me contavam coisas velhas, versões muito diferentes e outros que, vistos à luz de um conhecimento mais pormenorizado ganham outros contornos - não averigua a idade do Marquês de Fronteira, o das memórias, que menciona como um dos subscritores da "manifestação" feita a Napoleão para pedir novo rei - e tinha 7 anos à data.
E Matilde de Melo?

quarta-feira, novembro 05, 2003

Ó LACRIMOSA



I
Ó lacrimosa, que, céu reprimido,
pesas sobre a paisagem da dor.
E quando choras, queda mansa de chuva oblíqua te sopra no areal do coração.

Ó carregada de lágrimas. Balança de todo o pranto! Que te não sentiste céu porque eras clara,
e tens de ser céu por amor das nuvens.

Quão nítido e quão próximo o teu país de dor se faz sob a severa unidade do céu! Como uma face devagar desperta no seu jazer,
que pensa horizontal ante a cósmica fundura

II

Nada mais que um hausto é o vácuo, e aquela verde plenitude das belas
árvores: um hausto!
Nós, que o hálito inda toca,
que ainda hoje toca, contamos
este vagaroso respirar da Terra
de que somos a pressa

III

Mas os invernos! Oh este secreto
recolhimento da Terra. Quando em volta dos mortos na pura recaída se reúne
a ousadia das seivas,
ousadia de futuras primaveras.
Quando a invenção acontece
sob a rigidez; quando o verde gasto
dos grandes verões
de novo se faz ideia nova
e espelho de pressentimento;
quando a cor das flores
esquece aquele demorar dos nossos olhos.

Rainer Maria Rilke
[Paris, Maio ou Junho de 1925.]

Trad. Prof. Paulo Quintela



segunda-feira, novembro 03, 2003

Sacré-Coeur

Atente-se no capítulo V: Jacinto vexado, por alguns "desastres humilhadores" decide vencer as "resistências finais da Matéria e da Força por novas e mais poderosas acumulações de Mecanismos", uma terapêutica homeopática condenada ao fracasso

Os esforços jacintianos provocam em Zé Fernandes o pesadelo que culmina com a visão do Ancião da Eternidade que sobre todo o conhecimento lê Voltaire, o céptico, e sorria, talvez, da nova crença racionalista, apolínea e da ausência de um cepticismo.

E após o pesadelo, a paixão por essa estranha Mme. Colombe, com os seus cabelos imensos, de uma dureza e espessura de juba brava, tal como, na Grécia, as bacantes cobertas de peles de animais, conhecida a afinidade de Dyonisos pelos animais selvagens - tigres em particular ( Mme. Colombe: ironia no nome ou uma ligação que me escapa. Há vários episódios que ligam Dyonisos a serpentes e pombas, bichos de afinidades eróticas conhecidas. Ou simplesmente, a duplicidade do citadino, do domado).

Passada a "sublime sordidez", Zé Fernandes purifica-se através de um episódio de embriaguez em que, muito visceralmente vomita Madame Colombe e se cura do acesso maníaco.
A tempo de salvar Jacinto, que morre dos tédios apolíneos: "Anulado, bocejava com descorçoada moleza. E nada mais instrutivo e doloroso que este supremo homem do séc. XIX, no meio de todos os aparelhos reforçados dos seus órgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as Forças Universais, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos séculos – estacando, com as mãos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indecisão mole de um bocejo, o embaraço de viver."

Zé Fernandes propõe, então, uma visita ao Sacré-Coeur.
Visita que quer fazer no interesse da sua (dele, Zé Fernandes) alma. O que é estranho, já que, lá chegado, não gosta da basílica, que não o interessa.
Só recentemente soube que o culto do sacré-coeur é um culto com origem no culto dionisíaco do coração, do coração que palpita (Marcel Détienne, “Dyonisos à ciel ouvert”). O bem da sua alma será restituir Jacinto à dele. E não é o Sacré-Coeur que salva, mas o caminho até lá.
Acompanhemo-los.
“E por fim logo que começámos a penetrar, para além de S. Vicente de Paula, em bairros estreitos e íngremes, de uma quietação de província, com muros velhos fechando quintalejos rústicos, mulheres despenteadas cosendo à soleira das portas, carriolas desatreladas descansando diante das tascas , galinhas soltas picando o lixo, cueiros molhados secando em canos - o meu fastidioso camarada sorriu àquela liberdade e singeleza das coisas. (....) E Jacinto murmurou, com agrado - É curioso.
Exclamação nova em Jacinto.
O que de facto, Zé Fernandes parece ter oferecido a Jacinto naquele caminho é uma nova "categoria epistemológica". Não é o campo que Jacinto encontra, o campo detestado e já conhecido enquanto categoria do conhecimento citadino ("P’ra o campo? O quê? P’ra o campo?!"), mas algo de novo, um "tertius genus" que une e integra o citadino e o "campestre". É esse "novo" que suscita a curiosidade jacíntica, o primeiro elemento a obrigar o príncipe da Grã- Ventura a marcar uma distância em relação ao que o cerca, em recriar a distância crítica em que Warburg veria anos mais tarde o acto civilizacional fundador.
E preparado Jacinto por este primeiro estremeção, criada essa distância Zé Fernandes pode fazer o seu excurso sobre a cidade, do alto do Sacré-Coeur um eloquente convite à liberdade e que, aliás, desmente soberanamente as singelezas de pobre homem das serras. Mas para quê disfarçar agora?
É no regresso do Sacré-Coeur que Jacinto desde há muito sente sede e que, encontrado um velho amigo, lhe apresenta Zé Fernandes com o seu sobrenome francês e "citadino": Fernandes Lorena.

Depois dessa jornada Jacinto é, pela segunda vez, um póstumo.

domingo, novembro 02, 2003

O "who is who" na Cidade e as Serras.

Jacinto mais do que filho póstumo de portugueses emigrados, é o filho da boa ventura, que o fez nascer nos Campos Elíseos, em Paris, no coração da cidade e da civilização - onde se move, príncipe, limpo dos males da hereditariedade, e isento dos males e pequenas dores que afligem os humanos "desde o berço, onde avó espalhava funcho e âmbar para afugentar a Sorte-Ruim, Jacinto medrou com a segurança, a rijeza, a seiva rica d’um pinheiro das dunas. Não teve sarampo, não teve lombrigas. As Letras, a Taboada, o Latim, entraram por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça. (...) Na idade em que se lê Balzac e Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade (...)
Mais: "Sem coração bastante forte para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o libertava, do amor só experimentou o mel". E "era servido pelas coisas com docilidade e carinho; - e não me recordo que jamais lhe estalásse um botão da camisa, ou que um papel maliciosamente se escondesse a seus olhos, ou que ante a sua vivacidade e pressa uma gaveta pérfida emperrasse.
Isto é, mais do que bafejado pela boa sorte, Jacinto é, enquanto personagem (quase?) inverosímil, a corporização de um programa civilizacional apolíneo.

Ao invés, Zé Fernandes, é o homem que vem das serras - e este plural é... plural e tão mais significativo quanto na chegada a Tormes, no cântico panteísta que entoa, Fernandes não refere "serras" mas serra: "Aqui vimos, aqui vimos serra bendita".
Mas homem das serras, e tão das serras quanto se quer fazer crer?
Quando se apresenta, afirma ser sobrinho de Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande. Mas, depois, sempre omite o nome Lorena. Por uma única vez, mas num momento particularmente significativo, quando descem do Sacré-Coeur, Jacinto apresenta-o como "Zé Lorena".
Quem são estes Lorenas, os Lorenas que Zé Fernandes era?
Nada mais do que os príncipes de Lorraine, senhores soberanos, por vários séculos, de uma dessas pequenas nacionalidades medievais que o fim do feudalismo liquidou em benefício dos nascentes estados modernos. Reformados da soberania, os Lorena eram, no entanto, reinantes na Áustria (Habsburg-Lorraine) e em França senhores de várias grandes Casa do ancién régime, a que pertencia, entre outras, a dos Duques de Guise - que tinha dado à Escócia e depois, à França uma rainha, Maria Stuart e, mais tarde, ainda outra: Maria Antonieta.
Ou seja, Zé Fernandes, em Paris era um peculiar "serrano", parente da alta aristocracia francesa (parente, entre outras, da Condessa de Grefullhe que contribuiria para a Duquesa de Guermantes de Proust)
E Eça sabia bem isso: a sua Mulher era, ela própria uma Lorena, desses de que falo... Os Lorenas portugueses nascem de uma aliança de uma filha de Luís de Lorraine, príncipe de Lambesc com o 3º Duque de Cadaval. Descendente desse casamento, um bisavô de Dona Emília de Castro conservava o nome.

Isto tudo para dizer que se Zé Fernandes não mente, oculta. E que, mais do que o portuguesíssimo Jacinto, está em casa, em Paris, na cidade-civilização. Zé Fernandes viaja incógnito, "disfarçado" de português das serras. E, no 202 é o oculto anfitrião do seu anfitrião.

Ora, perito em disfarces e embustes, ocultar-se é um dos atributos de Dionísio.

Que a uma das oposições sobre a qual se constrói a Cidade e as Serras seja a apolínea-dionísiaca é algo que não escapa a Frank de Sousa e não escapou a outros. Talvez tenha passado despercebido, por desconhecimento das geneologias - que Eça conhecia - esse sobrenome da mais alta aristocracia francesa entre os do narrador que, impressionado, murmura "Caramba!" ante os requintes do filho de Cintinho e Teresa, o serrano Jacinto de coração fraco, não era obra do acaso.

Li agora no Causidicus que o IPPAR não se retracta no episódio Harry Potter.

O Impensavel tinha-se perguntado, no passado Domingo, dia 26, se seria alguém demitido. De facto, a pergunta era mera retórica: para que alguém fosse demitido - ou por qualquer modo responsabilizado - seria necessário que o que se passou fosse percebido como indigno e afrontoso, mesmo que tardiamente, por quem tem a responsabilidade do Panteão Nacional ou neles manda.
O que, cá por coisas, me pareceu tarefa difícil.

E hoje, para os católicos, dia de Fiéis Defuntos - e foram católicos quase todos os que lá estão - naquele cemitério haverá, talvez, os habituais espectáculos de fantoches para a garotada.
Está aqui.

sexta-feira, outubro 31, 2003

Ilustre-se o dito no blog anterior.
O narrador, Zé Fernandes, começa por falar no avô de Jacinto, mas em meia dúzia de parágrafos, aliás, quatro, "resolve" toda uma geração (mantenho a ortografia, a da edição que existia e de que gosto mais do que a actual):

" E sob o pesado ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sêdas se enconchou, descançando de tantas agitações, n'uma vida de pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros d'emigração (o desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigestão, d'uma lampreia d' escabeche que lhe mandára o seu procurador em Monte-mór. Os amigos pensavam que a snr.a D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a boa senhora temia a jornada, os mares, as caleças que racham. E não se queria separar do seu Confessor, nem do seu Medico, que tão bem lhe comprehendiam os escrupulos e a asthma.
- Eu, por mim, aqui fico no 202 (declarára ella), ainda que me faz falta a boa agua d' Alcolena . .. O 'Cinthinho, esse, em crescendo, que decida.
O 'Cinthinho crescêra. Era um moço mais esguio e livido que um cirio, de longos cabellos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, por causa da tosse e de suffocações, errava em camisa com uma lamparina atravez do 202 ; e os criados na copa sempre lhe chamavam a Sombra. N'essa sua mudez e indecisão de sombra surdira, ao fim do luto do papá, o gosto muito vivo de tornear madeiras ao torno; depois, mais tarde, com a melada flôr dos seus vinte annos, brotou n'elle outro sentimento, de desejo e de pasmo, pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma rola, educada n'um convento de Paris, e tão habilidosa que esmaltava; dourava, concertava relogios e fabricava chapéos de feltro. No outomno de 1851, quando já se desfolhavam os castanheiros dos Campos Elyseos, o 'Cinthinho cuspilhou sangue. O medico, acarinhando o queixo e com uma ruga seria na testa immensa, aconselhou que o menino abalasse para o golfo Juan ou para as tepidas areias d' Arcachon.
'Cinthinho, porém, no seu afêrro de sombra, não se quiz arredar da Therezinha Velho, de quem se tornára, atravez de Paris, a muda, tardonha sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu um resto de sangue; e passou, como uma sombra.
Tres meses e tres dias depois do seu enterro o meu Jacintho nasceu.”

A morte do pai de Jachinto e antes os seus amores, o seu casamento e a apresentação da mãe de Jacintho - de notar a estranha vocação - são apresentadas quase como meras justificações da permanência da família no 202, fecha a introdução e ainda no mesmo parágrafo apresenta-nos o tema: um "meu Jachinto" desambaraçado de progenitores, de que o narrador se irá ocupar.

A semana atarefada e a Cidade e as Serras em segundo plano...

Lamento-me - ocupação em que gasto algumas horas que, de outro modo, seriam de puro aborrecimento.

Mas o Jacinto... Melhor, a mãe dele: creio que Eça, pura e simplesmente se esqueceu dela...
O pai, o Cintinho, morre meses antes de ele nascer. Da mãe, fora o necessário para a situar na comunidade miguelista emigrada em Paris, nem uma palavra. Nem sequer morre, o termo mais indicado para descrever a sua sorte parece-me ser o utilizado na pintura novecentista para os longes do céu e do tempo: azula.
É a avó D. Angelina, não a mãe de Jacinto, a figura tutelar do 202. É a ela que cabe a decisão, motivada pelos achaques da idade, de não voltar a Portugal. Talvez aqui resida um motivo para Teresinha azular, mas no lo creo.

Seja como for e por que motivo for, Jacinto é o mais póstumo dos heróis ecianos.

(Está um temporal desfeito, capaz de fazer esvoaçar telhas... Vou para a cama. Uhm.. parece-me que Pinho Leal refere, por diversas vezes, grandes temporais em Outubro. Outras vezes, porém, é um mês calmo e pacífico. Vá-se lá saber...)

quarta-feira, outubro 29, 2003

O Anarcoconservador, um novo blog amável, dos meus lados, linkou o Impensavel. Agradece-se, cumprimenta-se, retribui-se.
Ou assim como assim, escrevia no post anterior. O certo é que a emersão até à profundidade pode ser pode ser plácida, serena. De onde o "escalar", a persistência no esforço, na dolorosidade? Pfff....
Criei uma relação de necessidade que não é verdadeira: o último parágrafo é falso.
Que Camilo gritou sempre onde lhe doía parece-me uma verdade. Mas pode ser uma verdade de método.
O caminho mesmo do dizer não é ermo, a ruína não pode ser fruída sem o incómodo de muitas respirações.
E mesmo assim sucumbe-se, e ao relato, insiste-se.
Caberia antes calar, a escrita não nos cura de estarmos aqui dentro, le plus profond c’est la peau - Valéry - e acabar-se de vez com essa desajeitada tentativa de nos palpar por fora...
Ou, assim como assim, antes dizermos onde nos dói e sem escrúpulos e sem contenção, sem tentativas de avessos, escalar os capilares.
A desoras e a propósito de Camilo.

terça-feira, outubro 28, 2003

domingo, outubro 26, 2003

Ouvi há pouco a notícia do lançamento do Harry Potter no Panteon Nacional.
É uma afronta.
O problema está em saber a quê.
Testemos: o responsável por aquele monumento é posto na rua, ou não é?





sábado, outubro 25, 2003

Há tempos lia umas memórias - poderiam chamar-se de uma menina bem comportada de proví­ncia, tão placidamente relatam quotiadanos que, para o leitor de hoje, são pura arqueologia.
Nelas descreve o serviço de jantar de "todos os dias" da sua infância, com a representação do episódio de D. Fuas Roupinho.

Também, na minha casa da praia, havia esse "serviço de todos os dias" "cavalinho" da Fábrica de Sacavém, como agora sei que se chama e, igualmente, julguei que o cavaleiro era o miraculado da Nazaré. Um dia perguntei, riram-se - amavelmente, embora - e explicaram-me que não, que reparasse, era uma estátua equestre, entre ruí­nas num jardim, como havia nos jardins e parques antigos.
Eu, que tantas vezes pedira ao cavaleiro, que também, julgava um santo - por ter sido salvo do demónio - fizesse desaparecer o restos de fí­gado, de peixe, da clara do ovo estrelado, tive um dos meus primeiros e mais acerbos desgostos de fé, os que ferem a absoluta capacidade, não de crer, mas de crer que Tudo em todas as coisas está, benfajezamente.
Sarei essa ferida, mas o tecido cicatricial, delicado e transparente, a pele nova e rósea, foi o da desilusão.

Esclareci, um dia, a Autora das memórias que não era, não era D. Fuas, mas um motivo de inspiração quase seguramente inglesa.
Ça va sans dire: herético.




quarta-feira, outubro 22, 2003

A Leitura Partilhada agendou a leitura partilhada d'A Cidade e as Serras,
Com a menção ao livro de Frank de Sousa, como ante-leitura.
Sei que há eciólogos recentes que se têm ocupado deste romance, porém, não conheço os trabalhos.
Uma pequena bibliografia passiva aqui.

Uma das obras mais fundamentais é "Língua e Estilo de Eça de Queirós" estude-se Guerra da Cal, na edição da Almedina, um dos livros mais fundamentais. Há, disponível, aqui

O autor que me fez descobrir um Eça muito para além do que conhecia através das sebentas de liceu - mesmo das boas - e principalmente o último Eça, foi João Medina, com o seu "Eça político".

Para ter uma noção "actualizada" de Eça, aconselho a biografia do Escritor por Maria Filomena Mónica - escrita já depois da publicação da correspondência trocada entre Eça e sua Mulher, Dona Emília de Castro com o que muito ganha a devolução de um Eça desentulhado, como escreveu alguém ( a própria MFM? estou com preguiça ir ver...) das visões marcadamente ideológicas dos dois últimos séculos ou mesmo de antipatias e simpatias pessoais.

Tudo isto se lê, numa primeira leitura, em três tardes e "depois de jantares".
No Gloucestershire, vi na televisão, grupos de pessoas com coletes de sinalização verde-alface vêem a cores do Outono, na floresta. Surpreendi tiques de vernissage: ares compenetrados, buscas de distância de leitura - o que tomei por isso - pequenos ajuntamentos de connaisseurs.
Ao longe, gente entre as árvores, uma instalação.

Aqui, sem cores de floresta, ventania e chuvadas e bonanças dormentes que padeço quietamente.


sábado, outubro 18, 2003

Os dias "tanto se me dá, como se me deu", os verdadeiros, são raros.
Este um desses, em estado puro.

sexta-feira, outubro 17, 2003

Esta coisa de quererem que Portugal tenha a hora do meridiano de Berlim, questão que o governo quis inventar (certamente por lhe faltarem outras em que ocupe o seu génio resolvedor) é profundamente ofensiva, é uma imperdoável falta de respeito, sem qualquer justificação.
Metam-se cunhas uns aos outros, demitam-se todos ou, ficando, decretem as suspeitas coisas habituais, mas deixem-nos em paz, não macem, não aborreçam.
O meu voto já lá vai, airoso, para os nulos/brancos. Não, não são vocemecês. São os propriamente ditos, os do desleixo, inépcia, analfabetismo e asco. Muito asco.
Passem bem.

Ontem, aludi a um post do Textos de Contracapa e disso avisei o Autor do blog, por mail.
Hoje, ao ver o correio, encontrei um mail sucinto e cortês, agradecendo.
Assim me ensinaram, também, que se fazia, que todas as cartas tinham resposta.
Infelizmente, este mail foi um caso único - ou quase.
É o subdesenvolvimento da polidez... tão grave, entre nós, quanto qualquer outro.
(Mas não desesperemos).

quinta-feira, outubro 16, 2003

Leio a interrogação no Textos de Contracapa: "Afinal que país real conhecem a eles, que ideia têm a nosso respeito (...)?"
A resposta parece-me evidente e é cruel: eles são o país real... e, quando e quanto por eles nos pensam, não erram muito: o que lhes escapa, aquém e além, é pouco.
Os protestos que agora ouvimos e em que comungamos são a expressão de uma inevitável - e desprezivel - margem de erro, um desvio estatístico, uma imprecisão, meia dúzia de inquietações.
Que aí se inscreva, desde o séc. XIX, a malaise do ser português, que é, no seu melhor, o sentimento de uma derrota, eis a questão triste.

Por mim, perdõe-se-me o egoísmo e a ambição, finjo que estou cá de férias e dou-me por feliz quando encontro comensais para jantar agradavelmente. E como sigo a medida de Lucullus - não menos que as Graças, não mais que as Musas, não me queixo em demasia.
Cito de memória: "Os portugueses têm o sentido do luxo e da pompa, mas não o da dignidade"
A frase é da Rainha Dona Estefânia, numa carta a sua Mãe, e creio que a li nas "Cartas de D. Pedro V ao Conde do Lavradio", que Ruben A. coligiu e apresentou.

Perdidas as pompas - as pompas, aliás magras, da monarquia constitucional, perdido o luxo - o genuíno, o das atitudes - o que nos resta?

José Hermano Saraiva classificava, há tempos, na televisão, a actual 3ª república como a da pequena burguesia. Na altura, achei a classificação pessimista, inadequada por acanhada. Hoje vou-a tomando como um elogio e já imerecido, por excessivo.

quarta-feira, outubro 15, 2003

Perguntava-me, ainda agora, onde terei posto o meu Snorri que quero reler no fim de semana, entro no Aviz: a ortografia nórdica enquanto ilustração da estranheza.

É o lobby do arabesco, do suão.


Letreiro

O cinzento ora brando
hálito jacente da Tarde
- pétrea e marinha -
serena nos montes longe

(o meridiano recurvo
soergue a névoa das Horas,
- o bálsamo de um gesto que finde).
Bragança, a Time e o Governo

Se Bragança tem as meninas - como era, de há muito, público e notório - se a Time não mentiu, o Governo ofende-se com o quê?

Com o habitual... com a realidade, ou melhor, com a realidade em "letra de forma", com a publicitação, com a divulgação.

Ou seja, moral de bordel... Regista-se a coerência...

terça-feira, outubro 14, 2003

Caducidade

Areia movediça das horas. Silente e contínuo escoar-se
mesmo do edifício felizmente sagrado.
A vida sopra sempre. Já sem ligação ressaltam
as colunas ociosas, sem carga

Mas o decair: é ele mais triste que o regresso
da fonte ao espelho que ela de brilho empoa?
Mantenhamo-nos entre os dentes do mutável,
que de todo nos tome na fronte contemplativa

Rainer Maria Rilke, Muzot, fins de Fevereiro de 1924
Trad. de Prof. Paulo Quintela
Ed. Asa

segunda-feira, outubro 13, 2003

Reli, este fim-de-semana, algumas cartas da correspondência entre Eça e sua Mulher, Dona Emília de Castro.
Numa das últimas que escreve, da Suíça, dias antes de morrer, treze dias antes de morrer, pergunta-se com inquietação, como pode ter sossego e, por isso saúde, com as constantes inquietações de dinheiro.
Poderia ter acrescentado, mesquinhas preocupações, de uma vida de classe média pacata que era a sua.

E Eça de Queiróz era o maior escritor português vivo - continua a sê-lo, aliás - um colaborador assíduo em jornais portugueses e brasileiros, um diplomata de carreira com um cargo de responsabilidade e prestígio.

Hoje, a gente abre o jornal, lê uma coluna assinada por um anónimo e lá vem aquela prosa ressumando elegâncias caras de habitué das grandezas do mundo, em que se fala de Paris, de Roma, de Londres ou de Nova York com o à-vontade com que eu falo das minhas idas às cinco freguesias circunvizinhas.
Mas o que me aborrece mais, confesso, é a ausência de espanto, ou de desilusão, um e outra sintomas certeiros do principiante. Eu bem procuro, mas em vão: aquela prosa dir-se-ia que veio ao mundo rabiscada nos papéis de carta do Waldorf-Astoria, do Ritz, do Savoy, senhora de si, quase indiferente, blaisée.
Amuo. Amuo duplamente: por verificar quão tão longe estou desses usos de mundo e por cair no ressentimento castiço contra o estrangeirado, tradição ressentida em que me não reconhecia.
Apodá-los de provincianos nesses avessos de provincianismo como Pessoa fez a Eça? Seria fácil - e errado.
Dediquei-me a ler algumas coisas que publicavam. E aí... pelos contos, romancinhos, poemas, logo se descobre, às vezes melhor, outras pior escondido, um contentamento inteiro e imenso onde tudo submerge.
Eu não creio na infelicidade ou na miséria, mesmo as de mera convenção, como ponto de origem privilegiado da criação artística, mas narradores, autores implícitos e respectivos familiares - que os há - toda aquela gente se celebra em demasia. Não são provincianos, são parvenus e da alegria, da surpresa da chegada a um lugar ao sol bem pago se fazem, com poucas excepções, as letras actuais.


Prefiro o côté "história trágico-marítima".