domingo, dezembro 31, 2006

Não hoje ainda, mas o sol já se pôs e a madrugada será a do dia em que nos dizemos

Começa hoje o ano

Nada começa: tudo continua
Onde 'stamos, que vemos só passar?
O dia muda, lento, no amplo ar:
Múrmura, em sombras, flui a água nua.

Vêm de longe,
Só nosso ver teve começar.
Em cadeias do tempo e do lugar,
É abismo o começo e ausência.

Nenhum ano começa. É eternidade!
Agora, sempre, a mesma eterna Idade
Precipício de Deus sobre o momento,

Na curva do amplo céu o dia esfria,
A água corre mais múrmura e sombria
E é tudo o mesmo: e vento e pensamento

Fernando Pessoa

in Poesia 1918-1930

sábado, dezembro 30, 2006

Fui comprar e quando cheguei a casa vi, com alegria, que tinha sido desnecessária a saída, mas tenho sempre medo que me falte a companhia destas infelizes quão prestáveis e piedosas senhoras, sempre prontas a apoiarem-me nas ocasiões difíceis

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Tenho preguiça de ir buscar gelo e, por isso, a seco - mas não preciso levantar-me nem martelar o congestionado ice service do frigorífico - resolvi, substituída a bebida de fim de tarde pelo blogar, dizer o que acho foi o melhor e o pior deste ano por aqui. Melhor coisa que aconteceu: o Espectro e o ir embora foi a pior coisa, a par com a persistência por alguns desses blogs daquele estilo modernaço que consiste em ensanduichar uma observação erudita - e algumas daquelas observações eruditas são-no mesmo, ou pelo menos interessantes - entre alguns palavrões, profissões de fé em futebolismo e uma camada de interjeições «recreio de secundária» tardif para fazer coloquialismo blasé de banlieu.
Cansativo e muito aborrecido.
Noto em mim uma evolução desagradável: até agora, estava bem onde não estava.
Ultimamente, porém, nem isso.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Ah, sim, claro, apoiar gente valente!
(Já me tinha perguntado como teria reagido o regime iraniano àquele protesto corajoso - que me deixou tão reconfortado e optimista).
Falei há dias sobre o processo penal em Inglaterra. Aqui, para quem quiser mais e melhor informação.
O inacreditável é que há quem chegue mesmo a acreditar que o nosso processo penal é mais justo do que o inglês... Problemas graves do nosso ensino do direito e do nosso atraso em geral.
Quanto aos outros defensores do nosso processo penal, menos ingénuos, fazem-me lembrar aqueles médicos que tecem loas ao nosso serviço de saúde e à excelência dos nossos hospitais (pelo menos de parte deles, ou de alguns serviços - a coisa tem diversos graus de sofisticação e é normal começar mesmo por desabafos quase confidênciais sobre o que se passa neste ou naquele serviço ou hospital que, segundo eles são péssimos...) e medicina portuguesa em geral: fica-se quase convencido da bondade da parte sã do sistema, até que, à mínima suspeita de alguma coisa menos corriqueira os sabemos, aos nossos informadores, lá fora, em Inglaterra, ou na Alemanha, em França, em Espanha ou nos USA - tudo menos cá.
"Le principe de toute société est de se rendre justice à soi-même et aux autres. Si l'on doit aimer son prochain comme soi-même, il est au moins aussi juste de s'aimer comme son prochain."

Chamfort

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Fiquei em casa, li e dei uma volta pelos blogs. No Morel encontrei a entrevista com Miguel Esteves Cardoso. Ri-me com a questão da idade: o tom leve com que trata o peso do tempo faz da idade, melhor, da velhice, uma questão inteiramente para gente nova. Ri, mas acho perigoso: não estou interessado em sofrer a competição de hordas de adolescentes nas lamentações próprias da velhice que já quase começo a prezar e ajudam a gente a esquecer-se que coisa medonha é envelhecer, toda ela desvantagens e vexames! Miguel Esteves Cardoso, passado o estado de graça da convalescença da sua doença, perceberá que não está mais sábio, que essa piedosa mentira é, também, uma torpe mentira de gosto duvidoso, do quilate da dos saberes do povo simples. Todas as pessoas com alguma experência nesta coisa dos entas com quem tenho falado me confidenciaram que não se sentem mais sábias, nem mais felizes; pelo contrário, sentem-se mal, com dores de costas, problemas de visão, pouca paciência e frequentes ataques de pânico o que as ajuda a conservarem intactos o péssimo feitio e impecável bom gosto que sempre lhes conheci. É nelas que eu acredito, não no parvenu que, nestas coisas de idade, é Miguel Esteves Cardoso. A baby, digo eu - e sou mais novo.
Sem anginas, afinal.
Tarde soalheira. Hesito entre sair ou ficar a ler e sair só à noite, um pacato ir tomar café a casa de amigos.

O sol escondeu-se agora, o tempo mudou como previram os metereologistas.
Espilros, uma impressão na garganta, sem febre - mas o que significa não ter febre senão o poder escrever, daqui a pouco e referindo-me a este post: não tinha ainda febre, mesmo com acessos de espilros e a sentir já a garganta quando escrevi.
Estou a ficar com anginas, uma coisa já de outros tempos - a gente de agora tem amigdalites. Em compensação, o médico já não vem a casa e se viesse não esperaria encontrar à sua espera uma colher, embrulhada num guardanapo, num prato de sobremesa, no tabuleiro, tudo higiénico e branco. Servia a colher como espátula para observar a garganta suspeita.
Sem tudo isto, para quê ter anginas? Não posso deixar de me censurar este meu gosto pelo vão.

terça-feira, dezembro 26, 2006

Convalesço das festividades no silêncio quase perfeito deste depois de almoço.
Ontem, às pantomimas das crianças e adolescentes, responderam os adultos com a recriação da marcha do Rataplã na capoeira, usada no jardim-escola onde todos andámos. Não me saí mal, mas senti-me um pouco acabrunhado por ser o único a já não se lembrar de toda a letra. Depois de "à frente o galo" e "atrás a galinha" vinham os pintaínhos, sim, mas exactamente como? E o que se seguia? Confesso que trautreei atabalhoadamente algumas partes, mas desfilei, no meu lugar de 1º pintaínho, convicto e alegre pelas salas graves da histórica morada, como se escrevia em linguagem de guia turístico de antanho. Ouviram-se bravos e encores, alguns oriundos do sector mais circunspecto, e a justeza do reconhecimento do mérito artístico não deixou de ser tocante.

sábado, dezembro 23, 2006

A todos, muito pensadamente, um
Santo Natal do Menino Jesus!

Eu vivo aqui neste campo calmo, mas não descansado, à espera que estou sempre de receber uma carta do teor daquela que Casais Monteiro recebeu anos atrás de Fernando Pessoa e na qual JPP me dirá quem eu sou, onde nasci, o meu horóscopo, que pais e família me atribuiu e porquê, os meus defeitos de redacção, os meus vícios de raciocínio e limites que me contêm, ou o porquê do meu gosto pelo tempo frio; enfim e para abreviar, em que me explicará que, heterónimo dele eu e os outros todos somos, dos muito conseguidos aos que são meros apontamentos, aos brevíssimos esboços delineados em dois posts indecisos; em que me advertirá de que as minhas birras e algumas convicções, que me são, por vezes, tão duramente inexplicáveis, são discutíveis apenas enquanto meros recursos narrativos que afinal são; que, em suma, bloggers portugueses e alguns lá de fora, todos somos ele, nascidos de diferentes horas dos seus dias ou alturas da semana ou do mês, da posição em que se encontre, de onde se encoste para tomar uma nota, do que tenha acabado de ler, ou da necessidade de ilustrar um ponto mais difícil de um raciocínio.
Um dia receberei essa carta desagradável que, explicando tanto, explicará afinal a latere e pouco...
Uma coisa lhe agradeço, porém, desde já: que me tenha criado como um dos preferidíssimos de Charlotte, em tão boa companhia de tantos outros poucos happy few (s)eus.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Desilusão e previlégio

A desilusão veio de onde menos esperava: do Dr. Sousa Homem, lui-même, que deu para achar o nosso clima magnânimo!!!!... Está um frio de rachar, o quarto, quando acordei , estava frio apesar do aquecimento, a água do meu duche apenas tenuamente acima do morno e como houve esquecimento no aquecer do prato, tudo adquiriu um sabor gélido e hostil ao almoço. E de todo o lado ouvi queixumes semelhantes. Fica a gente a pensar no desnorte que por aí vai no uso dos adjectivos por quem tem obrigação de os não usar malevolamente.

A boa notícia - o previlégio - é que, tendo uns amigos meus ido para as suas terras beirãs passar o Natal, posso usar a minha colónia difícil que insistem, por ignorância pituitária, em achar com o aroma desagradável do mofo... Acabo por não usar, por me impedir de passar lá por casa (são os meus amigos geograficamente mais próximos) sem ouvir dichotes e protestos da dona da casa.
Pu-la hoje, abundantemente, para me compensar das agruras do duche, e têm-me ajudado a suportar o frio magnânimo - que, daqui a pouco tempo, se há-de transformar em ventania magnânima e, depois, em caloraça sahárica magnânima.
...e I de Ipswich

Depois de um mês e três semanas há um acusado no caso dos homicídios de Ipswich.
Vejamos como se passam lá as coisas: crime, investigação pela policia, detenção do suspeito (mas nem sempre é feita essa detenção) e, concluída a investigaçao, tudo desemboca na acusação.
Não há - leia-se cuidadosamente - não há, repete-se, "segredo de justiça" , como existe aqui, nem, aliás, nada de semelhante e entre a detenção pela polícia e a acusação não podem mediar mais do que 3 dias - sem certeza absoluta quanto a este prazo.
E aqui? Em Portugal, o arguido pode estar preso um ano sem ser acusado de crime algum e era entendimento e prática dos tribunais portugueses, até há 2 anos, o permitir estar o arguido preso esse ano sem saber porquê - situação que só cessou graças a um acórdão do Tribunal Constitucional proferido no âmbito do processo Casa Pia. Mas, apesar desse avanço, no nosso país pode-se ser preso antes do começo de qualquer actividade que se assemelhe a uma verdadeira investigação criminal...
Quanto ao Ministério Público quase não existe na Grã-Bretanha: a acusação é dirigida, na audiência, pelos advogados da Coroa, que recebem o caso da polícia e agem em igualdade com a defesa perante o Tribunal.
Compare-se com o que sucede cá.
Edificante, não é?

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Ontem, em casa de uma querida amiga de sempre, onde tinha ido levar o meu presente de Natal (e na loja, por dois ou três conselhos que eu pedira a quem simpaticamante se ocupava da minha compra, tinham adivinhado a destinatária do presente - a pequeneza encantadora de Lisboa), falava de livros e de uma livraria simpática onde tinha estado em Paris e me lembrara de lhe escrever um postal não enviado. Não tinha dito ainda o nome quando me perguntou: - Em frente da Brasserie Lipp? - Sim, exclamei eu, L' écume des pages! - Estive lá há uma semana, disse-me, lembrei-me de si, comprei um livro que lhe tenciono passar. Foi buscar o Journées de Lecture de Proust que a Fata Morgana editou Novembro passado.

Espirito natalício, tempo, divindades protectoras das velhas amizades.

terça-feira, dezembro 19, 2006



Compras de Natal: ser-se arrancado às doçuras das meditações e conjecturas em frente ao fogão, tudo em forma de viagem autour de la chambre, para as cogitações emulsionadas de Savarin, postas em prosa aimable, bem sei, mas não fat free.


segunda-feira, dezembro 18, 2006

Li agora:

Imigrantes deixam Portugal
Cada vez há menos estrangeiros a procurar o País


Felizmente, não pude deixar de me dizer.
Não por xenofobia, mas por ter sincera pena daquela pobre gente.
Esta é que é a verdadezinha:

«Toute nation a le gouvernement qu'elle mérite »

Comte Joseph de Maîstre, "Considérations sur la France"

E vou para a cama, reler as Voyages do irmão dele, até dormir.
Tenho adormecido com os livros a escorregarem-me das mãos, não os apanho sequer, apenas apago desajeitadamente a luz do candeeiro da mesa de cabeceira


Ah, às senhoras e senhores leitores que quiserem ler o texto da petição sobre a tlebs e concordem: agradece-se que assinem a dita. É o link das causas, aí à direita, em cima.

domingo, dezembro 17, 2006

É com um imenso orgulho que o autor deste blog anuncia que foi um dos co-nomeados "Person of the Year" pela muito prestigiada revista Time, tornando-se, com tal nomeação, membro de um exclusivo club onde, entre outras personalidades, figuram os Papas João Paulo II e João XXIII, Wiston Churchill ou Lindbergh.
Agradeço, comovido.

P.S. A única ambição que dá frutos - desde logo o de nos pôr a salvo dos numerosos ridículos em que se enredam as ambições sensatas - é a absolutamente desmedida.
Não se sabe para onde vai dar aquela estrada de bermas mal cuidadas, por entre a mata.

sábado, dezembro 16, 2006

Edward Hopper, Gas , 1940

Era o ser de olhar duplo, contemplando
O reino a que pertence e o seu etéreo
Desdobramento anímico; e, por isso
Olhava as duas faces do Mistério.

Teixeira de Pascoaes, Marânus

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Emendo posts que releio. Às vezes são meros erros de dactilografia, outros por não estar bem assim, por me parecer - e estar - abstruso e emendo pela mera irritação de não querer aquilo. Outros posts, deveria apagá-los: as palavras, por escritas, não devem deixar de ter o direito ao momentâneo, a serem coisas breves e desde logo semi-esquecidas.

E, corrigido, Cara Charlotte, parece menos uma má frase de um mau manual de instruções:

Emendo posts que releio. Às vezes são meros erros de dactilografia, outros por não estar bem assim, por me parecer - e estar - abstruso e emendo pela mera irritação de não querer aquilo. Outros posts, deveria apagá-los: as palavras, por escritas, não perdem o direito ao momentâneo, a serem coisas breves e desde logo semi-esquecidas.
Sem deve deve, sem deve deixar.
A contenção, feita da percepção de que há limites intransponíveis e transpô-los é abdicar o que cremos (sim, transitivo directo) e nos cimenta: há coisas que não se fazem, sítios onde se não vai, há coisas que não se podem ter.
É simples, nada de complicado.

Mudando de assunto: aquilo da "ERC" reguladora não sei quê, quem é aquela gente, quem os nomeou?

quinta-feira, dezembro 14, 2006

La douce France

Os franceses , 25% dos franceses, um quarto dos franceses, dizem-se de acordo com as ideias de Le Pen e o número de gauleses frontalmente em desacordo com a xenofobia e demais delírios daquele político desceu para 70%.
Faz ternura ver este progresso da Republique Française e tenho pena de não ter por aí um pedacinho de Marselhesa para honrar a façanha da republicana Frente Nacional.
Mas tudo isto, claro, que não é totalmente agradável, é obra dos USA, a quem devem ser atribuídas as responsabilidades habituais, como culpado de serviço.

«`All right,' said the Cat; and this time it vanished quite slowly, beginning with the end of the tail, and ending with the grin, which remained some time after the rest of it had gone. »

Um físico nuclear ilustrou uma partícula subatómica furtiva e o seu quê duvidosa com a careta do gato de Chishere que remained some time after the rest of it had gone. Interessante e subtil.
Alice foi um bom presente, e creio que se esqueceram de mim a seguir, li o livro várias vezes sem interferências, saboreando todo o non-sense.
A gravura é de Sir John Tenniel, o ilustrador das primeira edições de Alice

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Não sei se aquela coisa dos blogs está a funcionar bem mas foi por acaso que descobri - agora - que o Pé de meia e o Estudo Casos linkaram o Impensavel, que, muito obrigado, agradece.
Cara Charlotte, muito obrigado pela sua investigação, tão longe. Sempre me convenci que os pacifistas eram idiotas e vejo que a minha convicção estava - também - etimologicamente certa.
Tem razão quanto ao Miguel Esteves Cardoso, faz bem, é medicinal e eu, que não acho muito simpático em Portugal dizer bem de alguém (origina sempre maçadas para o elogiado) não resisti a um post de agradecimento. E a este.
Gostei de rever o Miguel Esteves Cardoso: está anafado (dos poucos que o estão mais do que eu), encanecido (também mais do que eu) e repara-se que nunca leu Eça com atenção - o que lamento. Além disto, continua inteligente, perspicaz, divertido e com aquele ar de felicidade tão raro de encontrar que suspeito que é verdadeiro.
Muito agradável o programa! E foi por indicação daqui, de um blog. Agradeço.

terça-feira, dezembro 12, 2006

«Sabe ele o seu francês?» - Sabia. Aos oito anos já me impingiam livros em francês - sim, um deles o Petit Prince - e sabia canções francesas. Uma delas, o "Au clair de la lune", que se cantava, também, nas aulas de francês. Soube ontem que a cançãozinha tão doce é uma daquelas cançonetas francesas: sim, é uma canção licenciosa, cheia de duplos sentidos, de alçapões para a inocência! Por um momento - em nome da honestidade declaro que brevíssimo -fiquei indignado, senti-me roubado na candura dos meus gorjeios diligentes e com accent caprichado. Depois, a indignação foi evoluíndo, tornou-se difusa, inebriante e ri com gosto, por essa partida pregada à francofilia lusa.
Max Ernst, Ein Mond ist guter Dinge, 1970, serigrafia

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Refrigério

Depois do espectáculo dos «double standards» quanto a ditadores, foi com alegria que vi apupado por estudantes o presidente do Irão, em nome de exigência de democracia. Sabendo que as consequências de tais protestos num regime daquele jaez se poderão traduzir em medidas fortemente desagradáveis para os manifestantes (ao contrário dos que se manifestam a favor do fundamentalismo muçulmano nas capitais ocidentais, que nada têm a temer) é bom saber que a democracia pode ser desejada por esse mundo fora e que há quem se disponha a pagar um preço por isso.
Resolvi pôr-me a caminho do Chile. Não para assistir ao enterro do antigo ditador, mas para ver como está aquela gente. Democracia, têm. Liberdade de expressão, idem - li vários jornais de opiniões diferentes e divergentes. Crescimento económico, também, e num grau que, confesso, me deixou um pouco invejoso ou, pelo menos, entristecido por aqui não ser asssim. Santiago do Chile pareceu-me uma cidade moderna, próspera, cosmopolita, elegante, com aquele ar de quem está bem na vida e que a mim, nado em Lisboa, me fez pensar na cidade suja e avelhentada, quase maltrapilha, que é hoje a capital portuguesa.
Depois deste primeiro olhar sobre o Chile espreitei os blogs chilenos: muitos e diversos. Conclui que os chilenos não estão mal.
Fui ainda ao site da Amnistia Internacional. E aí, fiquei estupefacto: aquela organização, reconhecendo que o Chile não tem problemas de direitos humanos de maior aconselhava, no entanto e energicamente, o governo da democracia chilena a incentivar os demais direitos para além dos já existentes e que são os comuns das democracias. Pareceu-me que se imiscuia em assuntos internos de um povo soberano, mas enfim... A preocupação principal era com uma greve de fome de quatro condenados por terrorismo e que tinham sido alimentados à força num hospital. Ah, e indignava-se muito por o Supremo Tribunal do Chile democrático ter considerado que as investigações devem ter prazos... Bem, mas não fora aquele indisfarçável e inimitável ar de prosperidade que tinha acabado de ver à direita e à esquerda no Chile pensaria que me tinha enganado no relatório. Mas não, era mesmo à democracia chilena que eram dirigidos aqueles remoques.
Resolvi ir ver o que diriam então de Cuba... Ah, lá estava, 72 presos de consciência, ou seja, presos políticos, e que sim, que havia problemas com a liberdade de expressão em Cuba. Parece que a AI não considera que Cuba seja uma ditadura e que manter um regime ditatorial não é, por si só, um crime nojento contra os direitos humanos. E para que não haja muitas perguntas é adiantado que "the embargo by the USA against Cuba continued to contribute to a climate in which fundamental rights were denied". Assim mesmo. Fiquei elucidado.
Depois disto, esperavam-me ainda as declarações do juiz Garzón que afirmou que os processos contra Pinochet não seriam encerrados. Tinha aprendido que a responsabilidade criminal terminava com a morte. Mas não, segundo Garzón. Já que assim pensa, o melhor, no entanto, é começar por casa: à esquerda e á direita e já que a morte não é obstáculo, não faltam motivos para inquéritos. É evidente que isso pode não ser muito conveniente, mas onde estão em causa princípios... Querendo continuar a fazer justiça no estrangeiro tem Cuba. Estão ainda todos vivos, ou quase. Quer nomes? Basta ler o diário oficial da ditadura cubana.

domingo, dezembro 10, 2006

Há horas, hoje à tarde, tinha lido um artigo que levantava a hipótese de todos os recentes acidentes clínicos de Pinochet serem um expediente para se livrar da justiça. Não eram, morreu. Talvez com o fito único de contrariar esta análise arguta, mas morreu.
Eu detesto ditadores e ditaduras e lamento que Pinochet não tenha prestado contas ao seu povo.
O que logo me irritou quando soube da morte, devo confessar, é que muitos daqueles que nos próximos dias lamentarão que Pinochet tenha morrido sem ter comparecido perante um tribunal, sejam os mesmos que se permitirão, sem qualquer pejo, com aquela desonestidade intelectual que lhes é tão peculiar quanto a impunidade em que se julgam investidos, chorar a morte doutro ditador, o octagenário e sanguinário Castro que, ao contrário de Pinochet, não se afastou do poder para permitir a transição para a democracia, é responsável por milhares de mortes, prisões e torturas, instrumentos ainda agora habituais num regime tão cruel que até o stalinista Saramago se sentiu no dever de se demarcar daquele horror, do que é feito diariamente àquele Povo oprimido, dividido, postrado na pobreza, enquanto os chilenos vivem numa democracia cada dia mais forte e constituem o mais rico país da América do Sul.

E já agora, se bem que não seja muito vulgar formular desejos nestas ocasiões, que Castro, pelo menos Castro, ainda venha a ser julgado pelos seus crimes e os do seu regime.
Porque nao há boas e más vítimas.
A nitidez azul e fria, dourada, o frio branco, ao longe olivais e verde, montes e outeiros e o vale, lugarejos a brilharem ao sol, o silêncio muito sossegado - isto é conselheiral, como ensinava Eça que era - mas gosto de escrever assim a lindeza deste dia.

sábado, dezembro 09, 2006

Na RTP 2, Mel Ferrer e Stewart Granger batem-se em duelo no Scaramouche. Não me lembro já bem do filme, que se passa no início da revolução francesa. Dessas alturas ficou-me na memória o Scarlat Pimpernell, de 1934, e que devo ter visto na televisão quando tinha dez ou onze anos e seguido, talvez, da leitura do livro de Orczy, antes dos muitos Dumas. Sei que, nas ingenuidades de uma infância ingénua, me lastimei por já não se viverem tempos em que se pudesse ser espião em Paris ou noutra capital e se pudessem salvar senhoras e demais gente inocente das garras dos robespierres. Estava, infelizmente, muito enganado...
Os francesas foram apenas os primeiros: os revolucionários estrearam o genocídio na contemporaneidade, já que as pessoas eram executadas, não por actos que tivessem cometido mas por, meramente, pertencerem a uma classe social, classe de que se pretendia a extinção em nome do "avanço da civilização" e a estas mortes matutinas, logo ao raiar da razão, seguiram-se milhões e milhões de outras, até aos nosso dias. Tanto estas, da aristocracia francesa, no já longínquo século XVIII, quanto as dos milhões dos desgraçadas imolados ao sentido da história - lembro-me da revolução russa, do leninismo e do stalinismo em épocas mais recentes - tiveram as cumplicidades comissivas e omissivas necessárias e os apoios entusiásticos de pessoas de bem que se permitiam insultar os reaccionários Scarlat Pimpernell que não sabiam ler o futuro e simpatizavam pouco com carnificinas.
Não sei a quem ou a quê agradecer ter preferido sempre o reaccionário, destemido e sensato herói inglês às robesperrianas virtudes e clarividência jacobinas e marxistas; à pimpinela, que sempre foi usada para quebrar encantos e quebrantos e a aguçar os sentidos? A Merle Oberon, Lady Blakeney, a mulher de Pimpinela? Não sei, mas todos os dias agradeço o cepticismo.

Tem medo de, apesar das boas intenções modestas - as menos letais - não ser um bom Scarlet Pimpernell? Verifique aqui

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Nossa Senhora da Conceição
(Esta imagem é o timbre de umas armas onde aparece o Terreiro do Paço e, nele, a torre onde, creio, estava um dos Relógios Falantes de D. Francisco Manuel de Mello)

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Pearl Harbour, 7 de Dezembro de 1941
Há 65 anos, sem prévia declaração de guerra, o Império Japonês atacou as bases navais norte-americanas no Hawai. Esse acto desencadeou a entrada na II Guerra Mundial dos Estados Unidos da América, ao lado da Grã-Bretanha. A República Francesa tinha-se rendido sem combate e a ex-URSS assinara um pacto de não-agressão com a Alemanha nazi que vigorou até Junho de 41, cinco meses antes deste ataque (o pacto entre os dois regimes totalitários e anti-democráticos teve, entre outras consequências, a de tornar ainda mais cruel o bombardeamento de Londres: a ex-URSS forneceu aos Alemães matérias-primas para a construção de aviões de combate e de bombas e outras munições).

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Cara Charlotte, a mim assim me parecia, mesmo sem lobrigar ómega algum, mas quem sou eu para afrontar as subtilezas do grego de Péricles?
Muito obrigado!
Passei o fim de tarde entre Mme Chauchat - o google, onde procurei uma tela com um retrato imaginário, devolveu-me uma marca de metrelhadoras da I Guerra... - e Mme. Colombe. Pobre e amada (muito) Mme Chauchat comparada à femme Colombe. De novo, ainda, a ideia de que há um Jacinto na Montanha Mágica quando reli nas palavras de Mann que é preciso sofrer e morrer para viver.
Mas a divagação começou ainda antes: com o Caso Litvinenko, russo como Madame Chauchat, lá das distantes estepes onde a vontade e o bravio pulsam num imaculado excesso e o veneno mais insidioso e a crueldade sem tremor são o incompreendido coup de grâce para essa desmesura que, por medo, fingimos ser-nos já insuportável.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

4 de Dezembro de 1980

Depois da escolha que, em 1975, os portugueses fizeram de um Portugal europeu, era preciso que alguém o modernizasse. Essa tarefa consistia em tudo fazer para proporcionar a existência de uma sociedade civil que não dependesse do estado e, por isso, que este último, autoritário, intervencionista, burocrata, fosse reformado, reduzindo-se o seu papel na vida dos portugueses.
O homem para fazer isto era, sempre acreditei, Sá Carneiro e a AD, com o CDS de Amaro da Costa, foi o único projecto político que me entusiasmou.
Há 26 anos que um crime adiou esse país que sonhei. Com a morte de Sá Carneiro e sem que o estado ou o país tivesse sido, no essencial, reformado, temos isto, em que merecidamente estamos.
Onde, entre outras coisas, a morte de um Primeiro-Ministro fica ignóbil e gratuitamente impune.

domingo, dezembro 03, 2006

De passeio pelos blogs: ri com gosto com as reacções ao artigo de JPP. A referência ao elitismo caiu muito mal, por verdadeira que seja. Outra fonte de boa disposição foi o prémio do melhor blog e bloguista (uhm, tenho que tomar uma atitude quanto ao itálico em blog. O uso abundante do itálico provoca-me vertigens, mal de que sofro, convincentemente, desde a mais tenra idade). Apercebi-me, ainda, que está metade deste mundo (deste pequeno mundo dos blogs>) a atribuir, puerilmente, prémios à outra. Quer-me parecer que se trata, no fundo, de uma desculpa para poupanças. Não querem antes trocar presentes? Não?
Nos últimos tempos linkaram o Impensável estes blogs:
O melhor amigo, o Kehillah-or-ahayim, o Vox Impia, o alessandrab, o Nos cornos do bicho, o Small Brother o Mouramorta e o 31 da Armada.

Peço desculpa da demora aos que há mais tempo fizeram o link para o Impensável.
Agradeço, muito obrigado, a todos.

sábado, dezembro 02, 2006

A Charlotte, se e quando por aqui passar e se tiver tempo: o «idiótes» grego, actualmente, homem de espírito curto, ignorante (Priberam) é o idiôtaï, de idios, particular, que Péricles usava para designar quem se alheava da coisa pública - e se criava, por isso mesmo, um estatuto de menoridade?
Se assim é, que má vontade com as particularidades...
Que tarde é já!

sexta-feira, dezembro 01, 2006

E falta lembrar a manhã, a manhã do 1º de Dezembro.
A de 1640, não outras, da minha petite histoire, usadas em idas a Badajoz para compras de los puros.
Ainda ontem, descobri que, pela segunda vez, reproduzi no blog o início de Moby Dick. Não vejo, porém, inconveniente, várias vezes reli - por estas alturas do ano - aquela abertura e este ano não, por não ter encontrado o livro. Assim fica aqui no blog mais à mão, como devia ter estado o livro. Por onde andará?
Um outro livro que, durante anos, gostava de reler por estas alturas era "O Monte dos Vendavais". Descobri, depois, que Novembro era a altura errada para o ler, por ser tempo no geral muito quedo e igual, que lhe calhavam melhor as ventanias de Fevereiro, ainda invernosas, onde há já pressentimentos - ia fazer um calembourg com Précis de décomposition, ficaria pressentimentos de decomposição - por ser disso que, penso agora, o livro trata desde a primeira página: de decompor.
En passant: Cioran era um admirador de Emily Bronte.
Pessoa, Eça - deste, o nascimento - e Proust, também a morte em Novembro, e de que este ano me lembrei.
Depois de ter feito o post da morte de F.P., a notícia das festas e músicas e luminárias na Casa Fernando Pessoa não pôde deixar de me pôr a pensar o que fazem génios, a gente que eles alimentam (literalmente falando), tendo tido os próprios - no caso dos portugueses Pessoa e Eça - vidas de algum aperto financeiro. Hoje há famílias, algumas delas regularmente constituídas, com despesas ordeiras de colégios de meninos, empregada, prestações de casa, carro e viagens, que deles retiram muito passavelmente a quase totalidade ou todos os seus proventos.
Eu não tenho nada contra isso, é necessário que alguém - falo dos honestos - os estude e desbrave.
Mas folguedos nos aniversários dos dias das suas mortes é, parece-me, de uma total falta de gosto.
Ontem, 30, fazia também anos que tinha nascido Churchill: festejou o seu 61º aniversário no dia em que Pessoa morreu. Não referi o nascimento para não misturar num post o que a vida mistura: tudo. As palavras do post anterior são as últimas que escreveu o Poeta.

terça-feira, novembro 28, 2006

«Camarate não foi um acidente, Camarate foi um crime que a justiça portuguesa não foi capaz de julgar. Espero que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condene o Estado português ao pagamento simbólico de um euro, e que esse euro encerre uma severa condenação moral ao Estado português que não foi capaz de levar Camarate a julgamento»
Li agora. Quem assim fala é o Advogado Dr. Ricardo Sá Fernandes.
O Impensavel alegra-se com a notícia e espera que a condenação seja severa.
Não deve, no entanto, ser simbólica: deve ser pesada, embora o dinheiro para a pagar saia dos nossos bolsos. Mas mesmo assim...
Mais: dever-se-ia apurar os responsáveis por no processo nunca ter sido deduzida qualquer acusação, aos quais seria apontada a rua, para onde iriam, com penalizações de pensões, etc.
Enquanto a impunidade durar - e, eventualmente, compensar - pouco ou nada mudará.
Millet, "Bergère et son tropeau", esquisse

Curioso efeito da intempérie: a chuva, as humidades, o suão, tudo parece fazer reviver a minha empalidecida francofilia.

Il pleut, il pleut, Bergère
(ou L'Orage)

Il pleut, il pleut, bergère,
Presse tes blancs moutons,
Allons sous ma chaumière,
Bergère, vite, allons;
J'entends sur le feuillage,
L'eau qui tombe à grand bruit:
Voici, voici l'orage;
Voilà l'éclair qui luit.

Entends-tu le tonnerre ?
Il roule en approchant ;
Prends un abri, bergère,
A ma droite, en marchant.
Je vois notre cabane...
Et, tiens, voici venir
Ma mère et ma soeur Anne,
Qui vont l'étable ouvrir.

Bonsoir, bonsoir, ma mère ;
Ma soeur Anne, bonsoir ;
J'amène ma bergère
Près de vous pour ce soir.
Va te sécher, ma mie,
Auprès de nos tisons.
Soeur, fais-lui compagnie.
Entrez, petits moutons.

Soignons bien, ô ma mère,
Son tant joli troupeau ;
Donnez plus de litière
A son petit agneau.
C'est fait. Allons près d'elle.
Eh bien ! Donc te voilà !
En corset qu'elle est belle !
Ma mère voyez-la

Soupons, prends cette chaise
Tu seras près de moi ;
Ce flambeau de mélèze
Brûlera devant toi ;
Goûte de ce laitage ;
Mais tu ne mange pas ?
Tu te sens de l'orage.
Il a lassé tes pas.

Eh bien ! Voilà ta couche
Dors-y jusques au jour ;
Sur ton front pur, ma bouche
Prend un baiser d'amour.
Ne rougis pas, bergère,
Ma mère et moi, demain,
Nous irons chez ton père
Lui demander ta main.

Fabre d'Eglantine
(guilhotinado em 5 de Abril de 1794 ou, conforme os nomes
que inventou para crismar os meses novos, a 17 de Germinal
)

domingo, novembro 26, 2006

Resto de post:........................................................................ «Imparcial como o destino» dizia Puchkine e é essa indiferença neutra - suprema ofensa - que, em Portugal, cria idades de ouro e pequenas tristezas nebulosas, fertéis, recompensadoras.
Antes isso que a desilusão nítida, imparcial, justa, estéril, muda. Antes esse infinito enquanto dure de Vinícius ao sapiencial desencanto de sabermos ser meramente assim: que o fim seja sempre triste, felizmente.

sábado, novembro 25, 2006


Dia Santo de guarda: há 161 anos, em 25 de Novembro de 1845, nascia
José Maria de Eça de Queiroz

sexta-feira, novembro 24, 2006

Que dia! Há muito tempo que não estava um tempo tão mau. Eu, preocupado com beiras, vigio, diligentemente, depois de ter avisado o Senhor João para estar de prevenção, que podia ter que vir cá de um momento para o outro. Até agora, nada, mas a ventania continua.
Eu gosto da fúria dos elementos, sofisticação de provinciano e, pacato, da mais-valia de conforto que é senti-la através do aroma das torradas e do chá mas, com tantas preocupações de ordem material (as malditas beiras - que nem sequer são beiras decentes, centenárias) não consigo concentrar-me na contemplação da natureza, de a desfrutar, como tudo se dizia - e sentia - deveras noutros tempos.

Umbrella
Moma, NY
Telefonou-me a minha empregada a dizer que "assim ficava em casa" se eu não me importasse - piedade tocante para me fazer crer que dissera eu outra coisa mais de acordo com as necessidades da minha comodidada e tal teria sido levado em conta e talvez mesmo pesado numa decisão que não fosse a de se pôr a salvo deste temporal desfeito. Disse-lhe que sim, que com certeza, que fazia muito bem. E percebo-a, de facto, isto está medonho. Mas e se os médicos e os... e os... e os... pensasssem do mesmo modo? Vai ser esta a linha do meu discurso - que pretendo subtil, conquanto firme -, segunda-feira, assim que ela chegue - se o tempo já estiver melhorzinho e ela se resolver, finalmente, a sair de casa.

P.S. Um parente meu, apanhado num "haviam" e afectuosa mas prontamente denunciado por mim, destinatário do mail que o continha, apresentou as suas imediatas e enfiadas desculpas. Ontem, tendo aparecido para tomar café, deixou cair, com ar casual, "a propósito do outro dia" que Camilo e Machado de Assis tinham caído no mesmo erro.
Dei-lhe os parabéns pela companhia ilustre.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Sempre pensei isso, que
"Life is never fair...And perhaps it is a good thing for most of us that it is not."
Oscar Wilde in “An Ideal Husband”
E muita da minha actividade consiste no cultivo e gestão de circunstâncias atenuantes, para o caso - não esperado - de um acesso de fair play divino.

terça-feira, novembro 21, 2006


Robert Rauschenberg
De uma passeata pelos blogs e universos adjacentes ficou-me a impressão que a palavra «ochlocracy» vai entrar na moda. Diria mesmo que vai manter, em aportuguesamentos que dela se farão, aquela sequência estranha de consoantes "chl" que parece pertencer a uma happy few loção do século XIX, enquanto o português "ocl" nos remete para aflições em vísceras infectas e urgências sobrelotadas. Desmancha-prazeres que sou, é só para dizer que «ochlocracy» em português se escreve mesmo oclocracia. Fica feiote mas é assim mesmo.
Entretanto, como estamos ainda nos tempos heróicos do uso da palavra, uma citação de Mencken sobre a oclocracia ou, como dirão os blogs portugueses, ochlocracy (ou ochlocracia):

«The practical politician, as every connoisseur of ochlocracy knows, is not a man who seeks to inoculate the innumerable caravan of voters with new ideas; he is a man who seeks to search out and prick into energy the basic ideas that are already in them, and to turn the resultant effervescence of emotion to his own uses.
in "The American Credo" de Mencken

segunda-feira, novembro 20, 2006

Fui ver o Almocreve e encontrei a prosa de Vasco Pulido Valente de quem tinha procurado, momentos antes, em vão, o "Glória" para oferecer em acção civilizadora (do meu exemplar, é escusado dizer, não me desfaço).
Mas era só para dizer que, desde a leitura gloriosa, a tragédia de Vieira de Castro me parece poder ter sido uma das fontes do "Alves & Cia", de Eça.
Alves, o Alves, apesar de Godofredo, ao contrário de Vieira de Castro, compreendeu. Compreendeu que a época era a da vitória definitiva da pacatez, da impossibilidade da aplicação de códigos de honra ultrapassados fora dos dramas representados e dos folhetins de capa e espada lidos e apreciados, uns e outros despedidas já tardias dos tempos da heroicidade romântica em questões de ménage - e, no geral, em todas as questões. O Godofredo Alves que sacrifica à pax doméstica e ao conforto moderno e a eles acaba por oferecer os pontos de honra - para não falar de sa petite doute - é o que Vieira não soube ser: um vitorioso. Um vitorioso sensato.

domingo, novembro 19, 2006

Acordar muito agradável. O dia está bonito, entre o nebuloso e o solarengo. Resolvi levantar-me, tomar um café. Agora estou à camilha e leio alguns blogs. Comecei pelo Abrupto . He cares! Como aquele homem genuinamente se preocupa connosco, quanto quer que pensemos bem, quanto nos quer salvar da falácia, das más decisões, quanto nos dá bons conselhos! E quanto é genuína nele essa preocupação paternalista... Admoesta-nos num post em forma de "eu bem tinha dito" sobre Santana Lopes, já que o livro parece confirmar com firmeza as suspeitas da leviandade pensadora do ex-estadista. Ora, eu fui daqueles a ter pensado que, dado ninguém fazer as reformas necessárias e a modificar o essencial, um governo de Santana não apenas não seria mais gravoso que qualquer outro quanto poderia surpreender numa ou noutra medida - além de proporcionar algum divertimento. Não foi assim, houve - ou fizerem crer que houve - demasiada trapalhice.
Mas, e isto é o que conta, expurgado o governo do play-ministrismo, em termos de resultados finais, o país continua a empobrecer e a afastar-se da média europeia com Sócrates - que não tem coragem para reformas necessárias e é mentirozeco e ridículo.
Ou seja, a trapalhice, a cobardia e a ineficácia continuam, só que com catadura sisuda, e por isso, aceitáveis, por serem o habitual.
Quando formos ultrapassados pela República de Malta no ranking dos países da UE avisem-me.

sábado, novembro 18, 2006

Marcel Proust

10 de Julho 1871 - 18 de Novembro de 1922

No dizer de Eça de Queiróz: «Je suis poussif», este week-end, estes últimos tempos.
Falta de vento noroeste ou de um nordeste frio, enxuto, limpído?

sexta-feira, novembro 17, 2006

The hour of the soul

At the deep hour of the soul,
Deep hour - nocturnal...
(Gigantic stride of the soul,
Soul in night's hold.)

At that hour, soul, rule all
The worlds you will
To govern - palaces of soul,
Soul, rule them all.

Make rusty your lips, with snow
Powder your lashes
(Atlantic sigh of soul,
Soul in night's hold...)

Soul, with darkness kohl
The eyes where like Vega
You arise...Of sweetest fruit
Make bitter gall.

Make bitter, dark as coal.
Grow great: and rule.

Marina Tsvetaeva
8 August 1923

Tradução do russo de David McDuff

quarta-feira, novembro 15, 2006

Os restos de um dia de chuva

(...) " Mas temo que a alusão às minhas páginas que leu contenha um mal-entendido. A lembrança [souvenir] a que dou tanta importância não é, de modo algum, o que se chama geralmente assim. A atitude de um dilettante que se contenta em encantar-se com a lembrança das coisas é a contrária da minha. Não que teoricamente, com premeditação, eu tenha constituído a esse respeito un sistema. Nada em mim de mais inconsciente. Mas assim como lendo Stendahl, Thomas Hardy, Balzac realcei, com o intelecto, os traços profundos dos seus instintos que eu gostaria de desenhar por isso nunca ter sido feito se esse tempo me fosse ainda concedido - do mesmo modo lendo-me a mim mesmo determinei imediatamente os traços constitutivos do meu inconsciente. [...] Posso dizer que a lembrança de Dostoïewski, Tolstoï (compreenda bem que quando cito estes grandes nomes não é para me igualar a eles! nem mesmo para deles me aproximar mil léguas!) o «ele deveria mais tarde lembrar-se sempre do momento em que tinha reparado nesta porta» é ainda qualquer coisa de extremamente contingente e acidental relativamente à «minha» lembrança, na qual, encontrando-se modificados todos os elementos materiais constitutivos da impressão anterior, a lembrança, do ponto de vista do inconsciente, toma a mesma generalidade, a mesma força de realidade superior que a lei em física, pela variação das ciscunstâncias . É um acto e não uma voluptuosidade passiva. De resto, a noção de prazer não existe para mim. Não que a minha vida seja desprovida de prazeres como se crê mas como não o procuro apenas acompanha o amor ardente que eu tenho pelas coisas e que talvez, com efeito, esteja um pouco sobreexcitado pela privação. Desculpe o meu estado de esgotamento que se traduz por um balbuciamento espiritual que eu devia evitar a uma inteligência como a sua " (...)

Marcel Proust, Carta a Jacques Copeau, 22 Maio 1913 in "Marcel Proust, Lettres", pg. 616
Paris, Plon 2004
Tradução impensável

terça-feira, novembro 14, 2006


E mandaram cá estes Chrisanthèmes que Renoir anotou tão bem.
Merci bien, veuillez agréer mes hommages les plus respectueux.
O telefonema, nham nham, nham lembrar que tem consulta de dentista às 16 h 30 e nham nhsm. Argh, odeio aquela voz.
Precisava de uns chrysanthèmes aqui, uma exposição deles por inaugurar era útil ou, em substituição, a letra do J'arrive do Brel, mais.... je ne sais pas, não me decido e é tarde. Há exposições de chrisanthèmes no Tintin, mas encontrá-las é difícil.
Começa a fazer frio. Fica assim, sem chrysanthèmes - uma palavra complicada, parece de uma dictée - mas os chrisanthèmes também não são flores simples, está uma coisa para a outra.
Vou dormir, fica assim, despojado, monacal, medievo-minimal.

segunda-feira, novembro 13, 2006

O tempo todo foi já criado e, todo já existente, estas manhãs, as tardes calmas, são pura eternidade, não matéria ou pretexto para alegorias dela.

Com sinceridade o digo: é o que penso neste meu pequenino momento teen.

E la nave va

quinta-feira, novembro 09, 2006

«Las revoluciones, tan incontinentes en su prisa, hipócritamente generosa, de proclamar derechos, han violado siempre, hollado y roto, el derecho fundamental del hombre, tan fundamental que es la definición misma de su sustancia: el derecho a la continuidad.»
Ortega y Gasset
Não tinha o Misantropo nos meus blogs logo ali à mão de semear.
Esquecimento? Preguiça? Fica o assunto resolvido.

quarta-feira, novembro 08, 2006

"Que os liberais acéfalos queiram acabar com a arte e cultura que não se pagam a si e que não tenham necessidade de ópera estatal, de boa música, de bailado, de cinema independente com ajuda pública, ou apoios para as artes visuais, etc, etc"

Eu, que sou conservador (mais, talvez, do que liberal; aliás, o que significa isso em Portugal?) vejo-me em palpos de aranha para saber a que título tenho de subsidiar as idas à opera, a um concerto ou a um bailado, de meia dúzia de senhores e senhoras da classe alta e média-alta, A, AB e B, como se diz agora - de Lisboa (e Porto) que não quer pagar o preço elevado desses espectáculos que nem sequer ou muito raramente saem - e podiam sair? - dessas cidades. Se o ilustre Crítico barafustasse sobre as maleitas do ensino de música, a falta de ensino de música a sério, que me parece ser o que o estado devia fazer e não faz, concordava. Mas subsididar espectáculos? Há um episódio inteligente do "Yes, Minister", a respeito das subvenções estatais à ópera que expõe os problemas muito pertinentes da questão (alguns relacionadas com esta maçada da democracia) num tom que não é totalmente boçal e saloio. Eu, se vivesse em Lisboa, também ia a S. Carlos, claro está - de que fui frequentador há uns anos largos e a preços ultra-subsidiados - mas sou português, o que significa que posso dizer uma coisa e, de imediato, o seu contrário e fazer ainda uma outra "não sim, mas talvez: olhem, afinal sempre vou" que é a formulação de um princípio da lógica nacional (o princípio do terceiro incluído*).
Ah, não percebo é o cinema independente. Independente de quê? Espero que do meu bolso... O melhor cinema que vi foi independente do meu bolso, desde John Ford a Howard Hanks, Lubitsch, a Hitchcock, a... É isso? É essa independência? Mas, além do meu bolso, esses eram, afinal, independentes de quem e de quê?

* Há quem fale a sério (?) em tal princípio, lá fora, em algumas faculdades. Quem quiser pode divertir-se aqui
Profilaxia do génio
O início de Moby Dick do post anterior pode ser usado também, com vantagem e ganho gerais, para evitar o derramamento indiscriminado da palavra "génio" nos blogs. Sempre que nos sintamos na tentação de achar aquele post daquele blog uma coisa genial, aproveitemos aquele litoral refrescante para arejar o discernimento.

terça-feira, novembro 07, 2006

O excesso de chuva substituiu-se aos nevoeiros das noites destes tempos muito quietos de Novembro. São esses, não estes, de temporal, que me fazem lembrar o mais belo começo de livro que já li. Todos os anos, durante aquela altura da vida em que gostamos de notar em nós a persistência dos hábitos, quando nada ainda está perdido por nada estar ainda definitivamente indagado ou resolvido, quando ainda há surpresas a esperar, de nós e dos outros, todos os anos, nos começos de Novembro reparava na lombada, que nesta altura do ano, pela tarde o sol ilumina, e pegava no primeiro volume, onde estes meus dias de agora,os destes cinzentos decénios sem redenção, desciam como uma ameaça sobre o sobrolho de um rapazola decidido a não se deixar abater. E lia, com a calma e lentidão de um pressentimento indesmentível, tal como se eu fora ele e encomendasse a minha alma a um deus paciente e vasto quanto um oceano:

"Call me Ishmael. Some years ago - never mind how long precisely - having little or no money in my purse, and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of the world. It is a way I have of driving off the spleen and regulating the circulation. Whenever I find myself growing grim about the mouth; whenever it is a damp, drizzly November in my soul; whenever I find myself involuntarily pausing before coffin warehouses, and bringing up the rear of every funeral I meet; and especially whenever my hypos get such an upperhand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people's hats off - then, I account it high time to get to sea as soon as I can. This is my substitute for pistol and ball. With a philosophical flourish Cato throws himself upon his sword; I quietly take to the ship. There is nothing surprising in this. If they but knew it, almost all men in their degree, some time or other, cherish very nearly the same feelings towards the ocean with me."

Herman Melville, Moby Dick

segunda-feira, novembro 06, 2006

O Impensável, coitado, tem sobrevido nem sei como... e no Verão passado tinha quase decidido, pouco antes de chegar a Kristiansand, acabar com ele, cruenta decisão, postas as coisas assim, mas de puro bom senso escandinavo; infelizmente, no afã de aproveitar todo o tempo de paragem na reposição do teor de nicotina indispensável à manutenção dos feixes nervosos do pacato autor destas linhas, esqueci. E esquecida a decisão, continuei-o. Mas está baço e anquilosado (não aparece clara a relação entre o relato desta vontade enxantemática de acabar com o Impensável e o que se seguirá, e que vem a ser um agradecimento que queria o seu quê dúbio - se o sono me não condenasse à clareza - mas ela, a relaçao, lá há-de estar e a acharei). É tardíssimo e isto mete links, continuo: no outro dia fui ver os blogs e neste teciam-se elogios ao Pastoral Portuguesa e fui ver. E era bom, bem escrito (quanto a mim, demasiado bem escrito, a prosa é preciso, por vezes, que empape bem em conjunções e orações subordinadas para que ganhe texturas, poeiras, grânulos que sirvam de alimento às aves). Dizia? Ah, e vi a história de Alistair Crump e, à minha frente o que tinha? Um mail que imprimira dez minutos antes, de um amigo meu que nasceu, já se sabe, em Edimburgo! Nem na província de há 35 anos atrás, dizem, se aterrorizavam assim os incréus com tal correnteza de coincidências! O blog, dito isto, pu-lo na minha lista dos mais à mão.
Ontem - ou anteontem. E reparei ontem que este blog estava mencionado no Pastoral com o sacro e herético nome, de Ámen Pélvis. Com o tempo chuvoso, as comissuras espásticas da humidade, poupei o sorriso. Mas agradeço.

domingo, novembro 05, 2006

The little boy lost in the lonely fen,
Led by the wand'ring light,
Began to cry, but God ever nigh,
Appear'd like his father in white.

He kissed the child and by the hand led
And to his mother brought,
Who in sorrow pale, thro' the lonely dale,
Her little boy weeping sought.

William Blake 1757-1827

sexta-feira, novembro 03, 2006

Interior da Havaneza, Agosto de 2005
Soube agora que fechou a Havaneza, a minha tão amada Livraria Casa Havaneza da Figueira da Foz!
Que tristeza!
A Havaneza era um dos poucos sítios decentes deste país: assim vai acabando o que era bom e digno. Fica o que esta gentalha medonha sustenta e os lugares com a calma e aristocrática dignidade da Havaneza, feitos de tempo e memória, estão condenados.
Que tristeza, que amargura!

quinta-feira, novembro 02, 2006

Estou a ler "A queda de Roma e o Fim da Civilização" do Ward-Perkins e pensei neste novo mercado aberto pelos diversos revisionismos: o de nos sossegar sobre a justeza das nossas certezas de juventude: sim, a queda do Império Romano foi mesmo violenta, terrível, sim foi mesmo o fim da civilização, tal qual a Europa conhecia. Sim, como me tinham dito quando eu tinha não sei quantos poucos anos.
Serviço Público:
Veio alguém aqui parar, via google - não a hoje, mas a Outubro de há 3 anos, por causa e busca das queijadas de Pereira.
Ora vejamos, se veio em demanda da receita que pensa ser a original por julgar que é saudosismo o não lhe saberem agora ao que lhe sabiam em criança (se foi criança num decénio decente do século passado), tenho a solução: há uns tempos, depois da vendedora perceber que estava perante um guloso da velha guarda que objectava a todos os «que eram assim mesmo, sempre foram», e lhes opunha um não inexplicado mas veemente, veio a solução honesta e, creio, saudosa: «é o leite». Sim, ela acabou por confessar que o leite usado na feitura das queijadas de Pereira era dantes bom leite de ovelha e hoje é industrial e de vaca. E dessas antigas de que me lembro, já ninguém faz. «E é dessas que o senhor se lembra, é por isso; o resto é tudo como era». Pois é, o resto é igual.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Assunto resolvido.
Acabei por ser acordado, antes da hora a que tencionava levantar-me, pelas criancinhas que pediam os bolinhos. O meu amor às tradições vacilou.
O almoço foi agradável, conhecia toda a gente da minha mesa, a falta de novidade foi compensada pelo tom mais íntimo. Discutiram-se dietas e experiências com dietistas, dos mais conhecidos aos de vão de escada. Ouvi atentamente e alvitrei animadamente segundas opiniões aos casos mais renitentes mas, de vez em quando, o sono aparecia.
Espero que o próximo almoço seja um jantar.
O que vale é que Dia de Fiéis Defuntos é quando um homem quiser e por isso ninguém pode levar a mal que eu esteja com cara de enterro e profundamente magoado amanhã no almoço que me obriga a sair da cama a horas cretinas.

segunda-feira, outubro 30, 2006

Magníficos, estes dias do verão de S. Martinho!
Tentei ilustrar com um canvas, mas este tempo, no mundo anglo-saxónico, o indian summer, parece ser domínio do kitsch bem intencionado. Ora, o verão de S. Martinho e estes dias violentamente tentadores de se deixar tudo e pormo-nos a caminho não podem ser domados a golpes de pincéis mergulhados nos amarelos, ocres, encarnados e fulvas sentimentais coisas afins.

domingo, outubro 29, 2006

Passeava pelos blogs quando me apercebi que esta domingueirice não é diferente da passeata pelos centros comerciais, impressão tão mais incómoda quanto alguns blogs se tornaram autênticos centros comerciais, no afã de ampliar e diversificar a oferta. Alguns outros, mais pacatos, não deixam de exibir, por estas horas tristes de domingo uma imagem solitária de montra de loja de província. O que une tudo é o ar comercial (eu não nutro pelo comércio o ódio ou o desprezo que erroneamente se costumam apelidar aristocráticos; o comércio possibilita a minha vida tal como a concebo) mas confesso que gostaria de ver alguns mais egoístas, menos preocupados com a clientela. Creio que já sofri a tentação e pensei em avivar os meus leitores - cada vez menos e mais ingratos - com algumas promoções de outono e tinha até matutado num lema «Já sabe, o post elegante é no impensavél, o blog que nunca pensou» mas prefiro continuar assim, sem abrir filiais, sem tentar expandir o negócio ou fazer campanhas publicitárias. Por teimosia e preguiça e uma inabilidade natural e tocante para fazer qualquer coisa interessante na qual, seguindo os conselhos de Wilde quanto à ignorância, não tenciono mexer.

sexta-feira, outubro 27, 2006

Do aborto ao abrupto

Do aborto já disse aqui considerar que a vida humana é inviolável e que começa com a concepção.
Mais terei dito, se a memória não falha, que da discussão logo ressalta que o aborto é visto, afinal, como aquilo que os seus defensores negam que deva ser: um método de contracepção. Num tempo em que há uma panóplia de métodos para evitar a gravidez, é o prémio da desresponsabilização e da mais leviana licença. Mais terei dito que tendo em consideração o leque de métodos para evitar uma gravidez indesejada, a discussão sobre o aborto pertence ao puro excesso onde hoje em dia se inscreve o rocaille hedonista reinante. Mas, já que concomitante a este cultivo luxuoso de direitos há, mais ou menos sincero, o das boas intenções, o aborto está condenado pelo mero avanço da consciência da sua ilicitude que, nestas questões do termo inicial da vida humana se situava, ainda há pouco mais de um século, nas primeiras semanas, senão meses, depois do nascimento do pimpolho: nesses tempos, era o infanticídio o alvo das apaixonadas controvérsias que hoje se repetem a propósito do aborto... - o mero avanço da medicina se encarregará de fazer com que a todos pareça hediondo que se faça a um feto de algumas semanas o que essas almas sensíveis pró-aborto considerariam um inqualificável crime quando feito, hoje em dia, a um recém-nascido, independente de todas "as condições socio- eocnómicas e culturais envolventes"

O cão de guardo do Abrupto provoca em mim os piores sentimentos que um cão de guarda pode provocar a um passeante descuidado. Desta vez insurgia-se contra uma notícia do Expresso sobre o "casal Sócrates". A notícia em si, era tudo o que JPP diz dela. O que já não é despicienda, todavia, é a questão das vidas privadas da figuras públicas. E até pela pequenina questão da despesa: imaginemos um primeiro-ministro com dez relações amorosas (reparar na discreta alusão multiculturalista). Nos tempos que correm, de ameaças terroristas, as senhoras - ou os senhoras, se o cargo fosse exercido por uma senhora devassa (reparar no discreto sexismo, aqui) - teriam de ser protegidos. E todo esse alforge de amores seria motivo de preocupação e despesa (pública) para os serviços secretos, como o foi, por exemplo a bastarda de Mitterrand, com direito a segurança e que os franceses pagaram durante anos, sem saberem, através dos seus impostos. Se alguém quer ter uma vida privada inviolável nao se candidate a cargos públicos. Sobre o artiguinho, neste caso e naquela ocasião e sob aquele pretexto, já se deixou escrito acima.
E depois de ter escolhido a tela do Fairfield, umas páginas de Eça final e esta Sonata nº 4 do Scriabin caem que nem ginjas no meu october interior.
Fairfied Porter, October Interior, 1963

quinta-feira, outubro 26, 2006

O Impensável enverga o seu melhor ar de paisagem de beira da estrada e agradece ao Miniscente a referência amável feita.
Formigas para cá e para lá na minha máquina de café. Também a mim este tempo faz sono.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Às 5 da manhã de hoje estava a ver a chuva. Excessiva, batida pelo vento quase morno, tinha pouco de europeia. As noites de chuva decentes são acompanhadas de frio cortante e ventos gélidos e cruéis e os cansados viajantes lobrigam ao longe, por entre as grossas bategas, um portão de quinta. Com a tocha, tentam decifrar, pelas armas ou pelo monograma do escudo sobre o portão, a quem pertence aquela casa onde esperam encontrar abrigo. A gravura francesa do séc XIX repete muito este tema que ilustrava coisas dos Dumas e dos outros menores.

terça-feira, outubro 24, 2006

Vantagens do affaire Equador e mais coisas que me aconteceram desde ontem: por causa do Equador, África etc, encontrei o meu «Impressions d'Afrique» de Raymond Roussel. Reli umas páginas, li o meu nome escrito numa letra que já não tenho, a dos meus dezoito anos, que foram há muito. É uma edição da Livres de Poche, comprada ou na Bertrand ou na Buchholz, com aquelas palavras do Cocteau. Nessa altura lia surrealismo, algumas coisas da Internacional Situacionista e lanchava amiúde na ci-devant Caravela whiskies quádrupulos (os empregados eram meus amigos ou irmãos de amigas, ou amigos de amigos) e panquecas. A generosidade do serviço obrigou-me a apurar um modo de cumprimentar estilizado, de facto subrepticiamente acrobático - e se era um entrar constante de gente a cumprimentar! - o que acabei por conseguir o qual foi, com o andar razoavelmente de bicicleta, um dos poucos achievements da minha vida. A par com estas lembranças rassurantes lamentei-me, ao ver uma fotografia de Roussell (que inveja daquele Rolls visitado por um Papa - e pensei nos outros dois, recostados a pensarem na missão), ao ver uma fotografia de Roussel, dizia, da falta que me faz um carré de poche num tom castanho escuro, quase negro, e resolvi, ainda ontem, que iria amanhã a Lisboa fazer compras, pelo menos essa compra. Mas, hoje, agora, que faltam parcas horas para o começo da execução dessa decisão hesito, hesito por preguiça - que ontem, já quase a dormir, descobri não apenas que tem base fisiológica quanto serve, afinal, para nos preservar da mesmice. Tivesse eu ondas mu (sim, sic) a funcionar como deve ser e não teria um blog. As ondas mu, umas das muitas ondas cerebrais, deixam de ser produzidas quando fazemos um gesto voluntário (abrir e fechar a mão, por exemplo). Mas - eis o importante! -, também cessam quando meramente vemos alguém fazê-lo, alguém fazer um movimento voluntário!... Poupa-nos à repetição do trabalho feito, avisa-nos da presença de uma voluntas nas cercanias. Evita-nos a condição de condenados à repetição, ao já feito. Eis o que não soube evitar, quando sucumbi à moda dos blogs. Outra coisa, agora, se não for a Lisboa, que lenço ponho?
Ainda o assunto MST:
Vejam-se aqui as similitudes.
O Blasfémias, por sua vez, apresenta - o que eu tinha conjecturado - uma terceira fonte ou, talvez, o caminho para uma primeira, comum e origem de todas três elencadas.
Menos explicável, no entanto, são as semelhanças entre os começos dos dois livros...
Enfim, estamos longe daquele amigo de Eça que tinha um tal horror aos plágios que dizia: «como diz X, - e citava o nome - "estou triste"!».
Devo advertir os meus leitores de que não li nenhum dos livros pelo que o que digo - e estas existências monótonas, como a minha é, são tão propícias ao dizer - é baseado no que vou lendo aqui e ali, onde vou, cosido com as paredes dos sites, farejar o escândalo, com medo de ser incluído no rol dos destinatários das pauladas do Dr. Sousa Tavares.
Recebi agora um mail com aquele assunto do Miguel Sousa Tavares. Muito desgradável, quase inconcebível. A gente nem sabe o que há-de pensar.
Quanto a mim, espero que seja verdade!
(Assim o tédio, cansado de buscar em mim qualidades sobre as quais agir, se vê coagido a aguçar os meus defeitos).

sexta-feira, outubro 20, 2006

Paisagens

Num pálido desmaio a luz do dia afrouxa

E põe, na face triste, um véu de seda roxa...

Nuvens, a escorrer sangue, esvoaçam, no poente.

E num ermo, que o outono adora eternamente,

Vê-se velhinha casa, em ruínas de tristeza,

Onde o espectro do vento, às horas mortas, reza

E o luar se condensa em vultos de segredo...

Almas da solidão, sombras que fazem medo,

Vidas que o sol antigo, um outro sol, doirou,

Fumo ainda a subir dum lar que se apagou.

Teixeira de Pascoaes

quinta-feira, outubro 19, 2006

Roubo das Jóias da Coroa Portuguesa
Para que a culpa não morra solteira e alguns burocratas pretensiosos sejam responsabilizados pela sua leviandade, para que o dinheiro não vá na voragem... e que as peças sejam substituídas por réplicas (ao menos isso).
Assine aqui

Krapps ouve, numa noite futura, gravações feitas por si em épocas diferentes da sua vida.
O que fazer connosco, com as sobras?
Ou, apressadamente, nada fazer,: 'Perhaps my best years are gone.
When there was a chance of happiness. But I wouldn't want them back.
Not with the fire in me now. No, I wouldn't want them back.'
Uma série de questões que não deixarão de encantar os nossos
leitores nestas tardes de chuva. As torradinhas com manteiga
e sobre elas marmelade, e eis-nos prontos para Beckett
e perguntas circundantes.
Pode ler mais aqui, e aqui.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Everlasting Voices

O SWEET everlasting Voices be still;

Go to the guards of the heavenly fold

And bid them wander obeying your will

Flame under flame, till Time be no more;

Have you not heard that our hearts are old,

That you call in birds, in wind on the hill,

In shaken boughs, in tide on the shore?

O sweet everlasting Voices be still.

Yeats

terça-feira, outubro 17, 2006

Confesso: «corre que corre» é uma expressão lembrada de um livro que lia quando tinha oito anos. Mas, à porta do grande ciclo dos mortos, não é inoportuno lembrar essa criança desaparecida.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Verosimilhança de quietude, com o fluir lentíssimo deste tempo de outono.
O post anterior foi escrito antes da chuva, que despertou em mim afãs de bicho diligente e zelador da sua toca e por aqui andei corre que corre, a fechar janelas, a ver bem se estão fechadas como deve ser, se está tudo bem. Enquanto ia de uma para outra, pensava onde pus os livros. Não todos, mas os que leio por estas alturas e que direi depois.
O que direi depois parece-me que ficou bem, coloquial e afável, como se espera quando o barómetro deixa de ser fiável e temos que ser nós a acolher alguma previsibilidade, mas tenho algumas dúvidas se conseguirei deixar o silêncio deste outubro.
O silêncio já não como hobby - como o era para Dame Edith Sitwell - mas esforçada tentativa de verosimilhança.

sábado, outubro 14, 2006

O Anarcoconservador já faz 3 anos!
Os muitos impensáveis parabéns e..... uhm... que presente dar a um anarca, mesmo conservador? Não creio que outra coisa que não uma bomba, mas destas, que qualquer leitor de Burke sabe serem mais temíveis do que as outras, de que esta.

quinta-feira, outubro 12, 2006

«grand nez, petit panache»

Le panache, le panache de Cyrano é, diz Rostand (discurso de recepção na Academia): «l’esprit de la bravoure. Oui, c’est le courage dominant à ce point la situation – qu’il en trouve le mot. Toutes les répliques du Cid ont du panache, beaucoup de traits du grand Corneille sont d’énormes mots d’esprit. Le vent d’Espagne nous apporta cette plume ; mais elle a pris dans l’air de France, une légèreté du meilleur goût. Plaisanter en face du danger, c’est la suprême politesse, un délicat refus de se prendre au tragique ; le panache est alors la pudeur de l’héroïsme, comme un sourire par lequel on s’excuse d’être sublime. Certes, les héro sans panache sont plus désintéressés que les autres, car le panache, c’est souvent, dans un sacrifice qu’on fait, une consolation d’attitude qu’on se donne. Un peu frivole peut-être, un peu théâtral sans doute, le panache n’est qu’une grâce ; mais cette grâce est si difficile à conserver jusque devant la mort, cette grâce suppose tant de force (l’esprit qui voltige n’est-il pas la plus belle victoire su la carcasse qui tremble ?) que, tout de même, c’est une grâce que je nous souhaite.»
Mas disse-o melhor aqui.

Pas de panache, ces jours...

terça-feira, outubro 10, 2006


Odilon Redon, Les yeux clos, 1890
Eurydice
Why do they weep for those in the silent Tomb,
Dropping their tears like grain? Her heart, that honeycomb
Thick Darkness, like a bear devours...
See, all the gold is gone!
The cell of the honeycomb is six-sided... But there, in five cells of the senses,
Is stored all their gold...
Where is it now? Only the wind of the Tomb can know.
But I feared not that stilled and chilling breath
Among the dust...
Love is not changed by Death,
And nothing is lost and all in the end is harvest.
Dame Edith Sitwell

segunda-feira, outubro 09, 2006

Quelque découverte que l'on ait faite dans le pays de l'amour-propre, il y reste encore bien des terres inconnues.

François, Duc de La Rochefoucault

sexta-feira, outubro 06, 2006

É da Cecília Meirelles, que morria do que no mundo havia.

Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.

quinta-feira, outubro 05, 2006

5 de Outubro

Passados que são 96 anos de república quase um terço dos portugueses não se opunha a ser súbdito do Rei de Espanha.


Pourvu que ça dure...

segunda-feira, outubro 02, 2006

What Is Life?

Resembles Life what once was held of Light,
Too ample in itself for human sight?
An absolute Self - an element ungrounded -
All, that we see, all colours of all shade
By encroach of darkness made ?
Is very life by consciousness unbounded ?
And all the thoughts, pains, joys of mortal breath,
A war-embrace of wrestling Life and Death ?

Coleridge

sexta-feira, setembro 29, 2006

quarta-feira, setembro 27, 2006

Agradeço os parabéns e o Hopper ao Anarcoconservador.

A Charlotte, agradeço os parabéns, o toast e a citação de Beckett sobre Proust

terça-feira, setembro 26, 2006

Minuciosa formiga

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.
Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.
Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.
Assim devera eu ser
se não fora não querer.

Alexandre O’Neill

sábado, setembro 23, 2006

sexta-feira, setembro 22, 2006


anos de impensável...
Muito tempo, muito tempo!
Agradeço ao meus amáveis leitores a persistência, porque, como já deverão ter notado, isto não dá mostras de melhoras.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Tenho de convir que

O dr. Fernando Rosas, uma das minhas queridas antipatias de estimação, foi oportuno ao lembrar o escândalo do envelope (que motivou uma intervenção especial do então presidente da república) e que, apesar do pedido de celeridade feita pelo Dr. Sampaio, não está concluído, esgotados embora todos os prazos legais.

quarta-feira, setembro 20, 2006

- É, é o Brancusi, em 1925 no atelier dele. Fotografia do Steichen, sim. Uhm? Empoleirado num escadote, com certeza. Mas o que eu estava a dizer é que o Impensavel está um bocado seca.
- Está uma coisa soturna e o streap-tease não ajuda.
- As confidências?
- As confidências, os queixumes, tudo aquilo. Lá em casa já ninguém lê.
- Estive com ele no almoço da tua prima. Achei-o tristonho.
- Ele foi?
- Foi?
- Ao almoço.
- Foi.
- Ora essa, triste porquê?
- As coisas da Escandinávia. Parece que não lhe chegou... É a melancolia das latitudes.
- ?
- Aquela coisa do Gould, do pianista. O Norte e não sei o quê...
- Sagas? A Wallhala?
- Não... é mais brancos e buréis, frio.
- E vai no Verão?
- Fiquei com a impressão que no próximo, ao Canadá, não percebi bem. Não faz muito sentido. Agora, que ia a Londres, no princípio do mês. Olha, disse-lhe que também talvez fosse.
- E ele?
- Que sim.

segunda-feira, setembro 18, 2006

Uma boa notícia nunca vem só: além do aniversário de Charlotte, a esquerda sofreu uma derrota histórica na Suécia!
Os maometanos continuam a exigir perdão depois do Santo Padre ter lamentado a interpretação (nem podia lamentar outra coisa senão isso). Esta exigência dos muçulmanos parece-me puro capricho e gosto por humilhar, embalados que vão com a vitória alcançada com o assunto das caricaturas.
Espero sinceramente que o Vaticano não ceda.
Pergunta em noite de insónia:

Mas afinal o que trouxe de bom e de novo o islamismo?
"Entre as religiões, o islão deve ser comparado ao bolchevismo e não ao cristianismo ou ao budismo. O cristianismo e o budismo são antes de tudo religiões pessoais, com doutrinas místicas e o amor da contemplação. O islão e o bolchevismo têm uma finalidade prática, social, material e o seu único objectivo é estender a sua dominação sobre o mundo"
Lord Bertrand Russell, lógico, filósofo pacifista, Prémio Nobel 1950

domingo, setembro 17, 2006

O ruído de uma civilização no seu fim - refiro-me ao Islão - aliado às estridências de uma esquerda senil não são suficientes para estragarem a suavidade deste domingo.

P.S. Se tudo isto não ocasionasse muitas vítimas, podíamo-nos rir um pouco da estranha aliança entre o relativismo europeu e norte-americano e o absolutismo islâmico.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Depois de ter lido o discurso de Sua Santidade o Papa Bento XVI vi um senhor na televisão, muito douto, a explicar que o Santo Padre citou o Corão a despropósito e mais não sei o quê. Fiquei com a sensação de que é preciso ser muito, muito culto, um erudito, para falar sobre o Islão sem ofender os muçulmanos que, ao contrário dos cristãos, são muito ciosos da sua crença e zangam-se - coisa que os cristãos não têm o direito de fazer (nem a necessária paciência).
Da próxima vez que ocorrer uma lapidação ou amputação, o que devo fazer de correcto face ao entendimento do Corão? Possso indignar-me, achar que tudo aquilo é uma terrrível selvajaria ou devo calar-me em respeito às especiais susceptibilidades dos maometanos, tentando compreender as vantagens da suposta desumanidade e admitir que a minha indignação que me parece tão natural é, afinal, toda ela feita de ignorância?
Espero que, nessa ocasião - que, como cristão, tenho a esperança que não chegue - os eruditos do islão expliquem como interpretar correctamente tais actos de que o meu cristianismo obnubila o significado ou me alegrem, afirmando claramente que apedrejar alguém até à morte ou até «meramente» amputar são medonhas coisas.

Leiam o discurso papal. E se tudo o que o Ocidente é de bom, da Magna Carta aos antibióticos, da democracia à genética - passatempo de monges -, digamos, apenas foi possível por ter entendido Deus do modo como o fez e o Santo Padre magistralmente explicou?
...mas convinha primeiro ler o discurso todo.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Ontem, com grande gosto e genuína saudade vi e senti chover - saudades curiosas, por extraordinarimente específicas do chover daqui, já que chuva foi coisa que não faltou nas minhas férias.
Aproveitei e adiantei a Paglia. Reli depois, já na cama, umas páginas do Comendador de Camilo. Hoje, dia sossegado, com saída para compras pacatas. É hoje que é o House? entre a Fox e a 4 (é a 4?) acabo por perder tudo. E tudo é as donas de casa, o da mafia e o house. Nunca sei os nomes.

P.S. Ah, o Sexual Personae lido em castelhano, que salero ganha!

quarta-feira, setembro 13, 2006

Bons momentos: aqui com FJV e aqui com vários post (destaque para João Miranda e os seus erros americanos e o Mundo de Mário).

terça-feira, setembro 12, 2006

Aquietam-se os sentidos, de novo é necessário o bom senso do sentir, ouvir velhos conselheiros da nossa mortal natureza; alija-se da pele o torpor tenso, do olhar a rapidez do monótono esplendor. É preciso, ao invés, agora, perscutar os bosques onde as ninfas (sabe-se isso, onde as ninfas se escondem) por entre a folhagem e a sombra se escondem.
É o Outono, é o Outono, Exceeding Glad Shall He [We] Be!
Rejoice!
Rejoice!

domingo, setembro 10, 2006

Renoir, O almoço dos remadores
Durante muito tempo associei este quadro - e um outro, muito idêntico - aos contos fluviais de Maupassant. Com o tempo, essa associação desfez-se (mas porquê, «com o tempo»? Tsc, tsc...) mas continuo a pensar nestes festejos aquáticos como domingueiras coisas de Verão.

sábado, setembro 09, 2006

Tomei ontem a 1ª dose, não da vacina da gripe, mas a da ligeireza: tinha tido os primeiros sintomas há dias, quando achei já não sei o quê muito interessante e mais não sei o quê muito bem achado e duas ditas já não sei de quem muito inteligentes e já não sei quem muito espirituoso e não ri quando, a crer em crónicas de jornais, artigos de fundo, blogs de fundo, confessionais et coetera, Portugal estaria necessariamente povoado por génios universais, deste novo tipo displicente, que parecem os seus membros tão geniais que nem dão por isso.
Esta 1ª dose terapêutica consistiu no «Lágrimas e suspiros» do Ingmar Bergman - um realizador inteligente e pouco dado a facilidades - vista ontem, às quatro da manhã (ignorando os meus próprios protestos).
Verifico, agora, que aquela dose de verdade sem complacências e desonestidades medíocres começou a fazer efeito e já hoje voltei a achar tudo mais comezinho e a rir dos problemas e achados (alguns dos meus, alguns outros alheios).

sexta-feira, setembro 08, 2006

Ninguém fala de Paul Valéry...

Les pas

Tes pas, enfants de mon silence,
Saintement, lentement placés,
Vers le lit de ma vigilance
Procèdent muets et glacés.
Personne pure, ombre divine,
Qu'ils sont doux, tes pas retenus !
Dieux !... tous les dons que je devine
Viennent à moi sur ces pieds nus !
Si, de tes lèvres avancées,
Tu prépares pour l'apaiser,
A l'habitant de mes pensées
La nourriture d'un baiser,
Ne hâte pas cet acte tendre,
Douceur d'être et de n'être pas,
Car j'ai vécu de vous attendre,
Et mon coeur n'était que vos pas.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Mas eu interesso-me por estas coisas? As Farc aqui, o governo, a gaffe, o outro que disse? Não.
Disso, quase apenas pela geografia do difícil arquipélago da boa e da má fé, dos ilhéus minúsculos que obrigam a rota a ser aquela ou soçobrar-se e pela condenaçao de qualquer partir, de qualquer ida, a uma supérflua coisa inquinada pela certeza.
A resposta do menino do pcp às questões levantadas na Assembleia da República sobre a presença de criminosos da Farc em Portugal é um notável exemplo de desonestidade e um exemplo ainda mais notável de honestidade.

Espero que tal honestidade reapareça no dia 11 de Setembro, tanto a propósito do ataque a NY quanto à deposição do grande democrata* Salvador Allende, o presidente chileno que recebia uns dinheiros do KGB.

* este itálico é "cotovelada & ahã? ahã?" mas fica.
O PCP convidou para a sua festa, que está na moda tratar de um modo que roça o sentimental kitsch, uma organização tenebrosa, de nome FARC que, entre outros crimes (tráfico de drogas em grande escala, coacção, maus tratos, assassinatos, etc.) mantém em sequestro, desde 2002, Ingrid Bettencourt, uma candidata à presidência da Colômbia na altura, para não falar de centenas de outros reféns menos conhecidos. De tudo isto, dos ataques homicidas das FARC contra a população civil e indefesa, têm conhecimento os responsáveis do PCP e o simpático Jerónimo e tudo isso não foi suficiente para evitarem o convite. Aliás, porque evitariam? E fazem-no com a cumplicidade de toda essa gentalha que anda por aí, a indignar-se.
Não esqueçamos isso e, já agora, atentemos na resposta do governo de Sócrates ao representante da Bolívia, o Embaixador daquele país e do seu governo democrático que protestou pela presença em Portugal dos assassinos e terroristas da FARC, classificada como tal pela UE.
Quando perguntei por Chestov, passei a ter direito a uma escolta amável e competente. "Malhereusemente, pas encore sur internet". De facto. Pensei, na altura, o estranho de ter sido ali que me lembrava, afinal, de comprar Chestov. Hoje reli sobre a onda de calor de há dois anos e das centenas de cádaveres que ficaram por reclamar nas morgues de Paris, e revi a minha breve guia, si rive gauche, seguramente tão laica quanto frequentadora da Av. Montaigne que, neste tempos, se volta para a analytical philosophy e textures de branco linho.

terça-feira, setembro 05, 2006



A propósito do calor, leia-se Júlio Dinis - que escreve admiravelmente e muito me permito recomendar a quem não o leu.
Este calor aqui descrito não é o de hoje e ontem, fora do seu tempo, excessivo e malsão. É um calor solisticial de Junho ou Julho, leal e franco.
Mas leia-se:

"Era meio dia, um meio dia de verão ardente, asfixiante, calcinador, a hora em que tudo repousa, em que as aves se escondem na folhagem, as plantas inclinam as sumidades, desfalecidas de seiva, e os ribeiros quase nem murmuram, de débeis e exaustos que vão.
Nem uma ténue viração fazia sussurrar as alamedas e os soutos nos vales ou os pinheiros dos montes.
Apenas pelas sarças volteavam, como em danças caprichosas, enxames de insectos alados, sendo o seu zumbido importuno, ou o cantar longínquo dos galos, os únicos sons a interromperem o silêncio daquela hora.
Os caminhos e os campos estavam desertos; povoadas e fumegantes as cozinhas, onde a família do lavrador se reúne para a refeição principal do dia.
Mas quem estendesse a vista pelo extenso lanço de estrada a macadame, que corta em linha recta a povoação, e onde, naquele momento, o sol batia em cheio sem ser impedido por a menor folha de árvore, ou beira de telhado, descobriria o vulto de um cavaleiro, caminhando a trote e envolto na densa nuvem de poeira, levantada pelos pés da cavalgadura.
Este cavaleiro era João Semana.
Trajava com toda singeleza o velho cirurgião. Um fato completo de linho cru, botas amarelas de solidez de construção, à prova de todo o tempo, chapéu de palha, de abas descomunais, tudo abrigado daquele sol canicular por uma enorme umbela de paninho vermelho, rival em dimensões de uma tenda de campanha, eis o vestido característico do nosso homem.
As rédeas flutuavam à solta, sinal evidente da distracção do cavaleiro e dos admiráveis instintos e superior discrição da alimária, que mostrava conhecer a palmos o caminho de casa e para ela se dirigia mais apressada que de costume.
Causava dó olhar para a fisionomia de João da Semana naquela ocasião. As faces de vermelhas, que naturalmente eram, quase se lhe haviam feito negras; o suor corria-lhe, como lágrimas pelas faces abaixo.
Mas o heróico octogenário não desanimava. Sorvia filosoficamente a sua pitada, assoava-se com ruído, e soltando depois um desses ahs, bem guturais - eloquentíssima expressão das delícias que o olfacto pode proporcionar a um mortal - dava mostras de consolado.
De caminho, ia João Semana lançando um olhar de comiseração para os milhos dos campos adjacentes à estrada, algum do qual o calor e a escassez das águas tinha definhado; e ao contemplá-lo parecia mais sentir por ele, do que por si, a insuportável temperatura daquele ambiente.
João Semana era também proprietário rural, e portanto, apaixonado pela lavoura, conhecedor das leis de cultura, e experiente prognosticador do futuro das novidades agrícolas; por isso, examinando com profunda curiosidade o aspecto dos campos, cujos donos pela maior parte conhecia, quase chegara a esquecer-se de que um ardentíssimo sol lhe dardejava sobre a cabeça raios ameaçadores, tentando em vão exercer naquela robusta constituição a sua influência maligna.
A égua é que não se esquecia assim facilmente disso, e, cada vez mais rápida, procurava furtar-se a tão incómodo calor, e ao seu inevitável cortejo de moscas, que a traziam impacientemente, não obstante os folhudos ramos de carvalho, com os quais João Semana lhe enfeitara o pescoço.
Depois de cinco minutos mais de trote acelerado, tomou o pobre animal, com manifesta ansiedade e sem esperar sinal do cavaleiro, por uma rua estreita, que abrindo-se ao lado esquerdo da estrada, seguia, sob espesso toldo de verdura por entre duas quintas fronteiras.
Era um oásis, depois do deserto."

As Pupilas do Senhor Reitor