sexta-feira, outubro 31, 2003

Ilustre-se o dito no blog anterior.
O narrador, Zé Fernandes, começa por falar no avô de Jacinto, mas em meia dúzia de parágrafos, aliás, quatro, "resolve" toda uma geração (mantenho a ortografia, a da edição que existia e de que gosto mais do que a actual):

" E sob o pesado ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sêdas se enconchou, descançando de tantas agitações, n'uma vida de pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros d'emigração (o desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigestão, d'uma lampreia d' escabeche que lhe mandára o seu procurador em Monte-mór. Os amigos pensavam que a snr.a D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a boa senhora temia a jornada, os mares, as caleças que racham. E não se queria separar do seu Confessor, nem do seu Medico, que tão bem lhe comprehendiam os escrupulos e a asthma.
- Eu, por mim, aqui fico no 202 (declarára ella), ainda que me faz falta a boa agua d' Alcolena . .. O 'Cinthinho, esse, em crescendo, que decida.
O 'Cinthinho crescêra. Era um moço mais esguio e livido que um cirio, de longos cabellos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, por causa da tosse e de suffocações, errava em camisa com uma lamparina atravez do 202 ; e os criados na copa sempre lhe chamavam a Sombra. N'essa sua mudez e indecisão de sombra surdira, ao fim do luto do papá, o gosto muito vivo de tornear madeiras ao torno; depois, mais tarde, com a melada flôr dos seus vinte annos, brotou n'elle outro sentimento, de desejo e de pasmo, pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma rola, educada n'um convento de Paris, e tão habilidosa que esmaltava; dourava, concertava relogios e fabricava chapéos de feltro. No outomno de 1851, quando já se desfolhavam os castanheiros dos Campos Elyseos, o 'Cinthinho cuspilhou sangue. O medico, acarinhando o queixo e com uma ruga seria na testa immensa, aconselhou que o menino abalasse para o golfo Juan ou para as tepidas areias d' Arcachon.
'Cinthinho, porém, no seu afêrro de sombra, não se quiz arredar da Therezinha Velho, de quem se tornára, atravez de Paris, a muda, tardonha sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu um resto de sangue; e passou, como uma sombra.
Tres meses e tres dias depois do seu enterro o meu Jacintho nasceu.”

A morte do pai de Jachinto e antes os seus amores, o seu casamento e a apresentação da mãe de Jacintho - de notar a estranha vocação - são apresentadas quase como meras justificações da permanência da família no 202, fecha a introdução e ainda no mesmo parágrafo apresenta-nos o tema: um "meu Jachinto" desambaraçado de progenitores, de que o narrador se irá ocupar.

A semana atarefada e a Cidade e as Serras em segundo plano...

Lamento-me - ocupação em que gasto algumas horas que, de outro modo, seriam de puro aborrecimento.

Mas o Jacinto... Melhor, a mãe dele: creio que Eça, pura e simplesmente se esqueceu dela...
O pai, o Cintinho, morre meses antes de ele nascer. Da mãe, fora o necessário para a situar na comunidade miguelista emigrada em Paris, nem uma palavra. Nem sequer morre, o termo mais indicado para descrever a sua sorte parece-me ser o utilizado na pintura novecentista para os longes do céu e do tempo: azula.
É a avó D. Angelina, não a mãe de Jacinto, a figura tutelar do 202. É a ela que cabe a decisão, motivada pelos achaques da idade, de não voltar a Portugal. Talvez aqui resida um motivo para Teresinha azular, mas no lo creo.

Seja como for e por que motivo for, Jacinto é o mais póstumo dos heróis ecianos.

(Está um temporal desfeito, capaz de fazer esvoaçar telhas... Vou para a cama. Uhm.. parece-me que Pinho Leal refere, por diversas vezes, grandes temporais em Outubro. Outras vezes, porém, é um mês calmo e pacífico. Vá-se lá saber...)

quarta-feira, outubro 29, 2003

O Anarcoconservador, um novo blog amável, dos meus lados, linkou o Impensavel. Agradece-se, cumprimenta-se, retribui-se.
Ou assim como assim, escrevia no post anterior. O certo é que a emersão até à profundidade pode ser pode ser plácida, serena. De onde o "escalar", a persistência no esforço, na dolorosidade? Pfff....
Criei uma relação de necessidade que não é verdadeira: o último parágrafo é falso.
Que Camilo gritou sempre onde lhe doía parece-me uma verdade. Mas pode ser uma verdade de método.
O caminho mesmo do dizer não é ermo, a ruína não pode ser fruída sem o incómodo de muitas respirações.
E mesmo assim sucumbe-se, e ao relato, insiste-se.
Caberia antes calar, a escrita não nos cura de estarmos aqui dentro, le plus profond c’est la peau - Valéry - e acabar-se de vez com essa desajeitada tentativa de nos palpar por fora...
Ou, assim como assim, antes dizermos onde nos dói e sem escrúpulos e sem contenção, sem tentativas de avessos, escalar os capilares.
A desoras e a propósito de Camilo.

terça-feira, outubro 28, 2003

domingo, outubro 26, 2003

Ouvi há pouco a notícia do lançamento do Harry Potter no Panteon Nacional.
É uma afronta.
O problema está em saber a quê.
Testemos: o responsável por aquele monumento é posto na rua, ou não é?





sábado, outubro 25, 2003

Há tempos lia umas memórias - poderiam chamar-se de uma menina bem comportada de proví­ncia, tão placidamente relatam quotiadanos que, para o leitor de hoje, são pura arqueologia.
Nelas descreve o serviço de jantar de "todos os dias" da sua infância, com a representação do episódio de D. Fuas Roupinho.

Também, na minha casa da praia, havia esse "serviço de todos os dias" "cavalinho" da Fábrica de Sacavém, como agora sei que se chama e, igualmente, julguei que o cavaleiro era o miraculado da Nazaré. Um dia perguntei, riram-se - amavelmente, embora - e explicaram-me que não, que reparasse, era uma estátua equestre, entre ruí­nas num jardim, como havia nos jardins e parques antigos.
Eu, que tantas vezes pedira ao cavaleiro, que também, julgava um santo - por ter sido salvo do demónio - fizesse desaparecer o restos de fí­gado, de peixe, da clara do ovo estrelado, tive um dos meus primeiros e mais acerbos desgostos de fé, os que ferem a absoluta capacidade, não de crer, mas de crer que Tudo em todas as coisas está, benfajezamente.
Sarei essa ferida, mas o tecido cicatricial, delicado e transparente, a pele nova e rósea, foi o da desilusão.

Esclareci, um dia, a Autora das memórias que não era, não era D. Fuas, mas um motivo de inspiração quase seguramente inglesa.
Ça va sans dire: herético.




quarta-feira, outubro 22, 2003

A Leitura Partilhada agendou a leitura partilhada d'A Cidade e as Serras,
Com a menção ao livro de Frank de Sousa, como ante-leitura.
Sei que há eciólogos recentes que se têm ocupado deste romance, porém, não conheço os trabalhos.
Uma pequena bibliografia passiva aqui.

Uma das obras mais fundamentais é "Língua e Estilo de Eça de Queirós" estude-se Guerra da Cal, na edição da Almedina, um dos livros mais fundamentais. Há, disponível, aqui

O autor que me fez descobrir um Eça muito para além do que conhecia através das sebentas de liceu - mesmo das boas - e principalmente o último Eça, foi João Medina, com o seu "Eça político".

Para ter uma noção "actualizada" de Eça, aconselho a biografia do Escritor por Maria Filomena Mónica - escrita já depois da publicação da correspondência trocada entre Eça e sua Mulher, Dona Emília de Castro com o que muito ganha a devolução de um Eça desentulhado, como escreveu alguém ( a própria MFM? estou com preguiça ir ver...) das visões marcadamente ideológicas dos dois últimos séculos ou mesmo de antipatias e simpatias pessoais.

Tudo isto se lê, numa primeira leitura, em três tardes e "depois de jantares".
No Gloucestershire, vi na televisão, grupos de pessoas com coletes de sinalização verde-alface vêem a cores do Outono, na floresta. Surpreendi tiques de vernissage: ares compenetrados, buscas de distância de leitura - o que tomei por isso - pequenos ajuntamentos de connaisseurs.
Ao longe, gente entre as árvores, uma instalação.

Aqui, sem cores de floresta, ventania e chuvadas e bonanças dormentes que padeço quietamente.


sábado, outubro 18, 2003

Os dias "tanto se me dá, como se me deu", os verdadeiros, são raros.
Este um desses, em estado puro.

sexta-feira, outubro 17, 2003

Esta coisa de quererem que Portugal tenha a hora do meridiano de Berlim, questão que o governo quis inventar (certamente por lhe faltarem outras em que ocupe o seu génio resolvedor) é profundamente ofensiva, é uma imperdoável falta de respeito, sem qualquer justificação.
Metam-se cunhas uns aos outros, demitam-se todos ou, ficando, decretem as suspeitas coisas habituais, mas deixem-nos em paz, não macem, não aborreçam.
O meu voto já lá vai, airoso, para os nulos/brancos. Não, não são vocemecês. São os propriamente ditos, os do desleixo, inépcia, analfabetismo e asco. Muito asco.
Passem bem.

Ontem, aludi a um post do Textos de Contracapa e disso avisei o Autor do blog, por mail.
Hoje, ao ver o correio, encontrei um mail sucinto e cortês, agradecendo.
Assim me ensinaram, também, que se fazia, que todas as cartas tinham resposta.
Infelizmente, este mail foi um caso único - ou quase.
É o subdesenvolvimento da polidez... tão grave, entre nós, quanto qualquer outro.
(Mas não desesperemos).

quinta-feira, outubro 16, 2003

Leio a interrogação no Textos de Contracapa: "Afinal que país real conhecem a eles, que ideia têm a nosso respeito (...)?"
A resposta parece-me evidente e é cruel: eles são o país real... e, quando e quanto por eles nos pensam, não erram muito: o que lhes escapa, aquém e além, é pouco.
Os protestos que agora ouvimos e em que comungamos são a expressão de uma inevitável - e desprezivel - margem de erro, um desvio estatístico, uma imprecisão, meia dúzia de inquietações.
Que aí se inscreva, desde o séc. XIX, a malaise do ser português, que é, no seu melhor, o sentimento de uma derrota, eis a questão triste.

Por mim, perdõe-se-me o egoísmo e a ambição, finjo que estou cá de férias e dou-me por feliz quando encontro comensais para jantar agradavelmente. E como sigo a medida de Lucullus - não menos que as Graças, não mais que as Musas, não me queixo em demasia.
Cito de memória: "Os portugueses têm o sentido do luxo e da pompa, mas não o da dignidade"
A frase é da Rainha Dona Estefânia, numa carta a sua Mãe, e creio que a li nas "Cartas de D. Pedro V ao Conde do Lavradio", que Ruben A. coligiu e apresentou.

Perdidas as pompas - as pompas, aliás magras, da monarquia constitucional, perdido o luxo - o genuíno, o das atitudes - o que nos resta?

José Hermano Saraiva classificava, há tempos, na televisão, a actual 3ª república como a da pequena burguesia. Na altura, achei a classificação pessimista, inadequada por acanhada. Hoje vou-a tomando como um elogio e já imerecido, por excessivo.

quarta-feira, outubro 15, 2003

Perguntava-me, ainda agora, onde terei posto o meu Snorri que quero reler no fim de semana, entro no Aviz: a ortografia nórdica enquanto ilustração da estranheza.

É o lobby do arabesco, do suão.


Letreiro

O cinzento ora brando
hálito jacente da Tarde
- pétrea e marinha -
serena nos montes longe

(o meridiano recurvo
soergue a névoa das Horas,
- o bálsamo de um gesto que finde).
Bragança, a Time e o Governo

Se Bragança tem as meninas - como era, de há muito, público e notório - se a Time não mentiu, o Governo ofende-se com o quê?

Com o habitual... com a realidade, ou melhor, com a realidade em "letra de forma", com a publicitação, com a divulgação.

Ou seja, moral de bordel... Regista-se a coerência...

terça-feira, outubro 14, 2003

Caducidade

Areia movediça das horas. Silente e contínuo escoar-se
mesmo do edifício felizmente sagrado.
A vida sopra sempre. Já sem ligação ressaltam
as colunas ociosas, sem carga

Mas o decair: é ele mais triste que o regresso
da fonte ao espelho que ela de brilho empoa?
Mantenhamo-nos entre os dentes do mutável,
que de todo nos tome na fronte contemplativa

Rainer Maria Rilke, Muzot, fins de Fevereiro de 1924
Trad. de Prof. Paulo Quintela
Ed. Asa

segunda-feira, outubro 13, 2003

Reli, este fim-de-semana, algumas cartas da correspondência entre Eça e sua Mulher, Dona Emília de Castro.
Numa das últimas que escreve, da Suíça, dias antes de morrer, treze dias antes de morrer, pergunta-se com inquietação, como pode ter sossego e, por isso saúde, com as constantes inquietações de dinheiro.
Poderia ter acrescentado, mesquinhas preocupações, de uma vida de classe média pacata que era a sua.

E Eça de Queiróz era o maior escritor português vivo - continua a sê-lo, aliás - um colaborador assíduo em jornais portugueses e brasileiros, um diplomata de carreira com um cargo de responsabilidade e prestígio.

Hoje, a gente abre o jornal, lê uma coluna assinada por um anónimo e lá vem aquela prosa ressumando elegâncias caras de habitué das grandezas do mundo, em que se fala de Paris, de Roma, de Londres ou de Nova York com o à-vontade com que eu falo das minhas idas às cinco freguesias circunvizinhas.
Mas o que me aborrece mais, confesso, é a ausência de espanto, ou de desilusão, um e outra sintomas certeiros do principiante. Eu bem procuro, mas em vão: aquela prosa dir-se-ia que veio ao mundo rabiscada nos papéis de carta do Waldorf-Astoria, do Ritz, do Savoy, senhora de si, quase indiferente, blaisée.
Amuo. Amuo duplamente: por verificar quão tão longe estou desses usos de mundo e por cair no ressentimento castiço contra o estrangeirado, tradição ressentida em que me não reconhecia.
Apodá-los de provincianos nesses avessos de provincianismo como Pessoa fez a Eça? Seria fácil - e errado.
Dediquei-me a ler algumas coisas que publicavam. E aí... pelos contos, romancinhos, poemas, logo se descobre, às vezes melhor, outras pior escondido, um contentamento inteiro e imenso onde tudo submerge.
Eu não creio na infelicidade ou na miséria, mesmo as de mera convenção, como ponto de origem privilegiado da criação artística, mas narradores, autores implícitos e respectivos familiares - que os há - toda aquela gente se celebra em demasia. Não são provincianos, são parvenus e da alegria, da surpresa da chegada a um lugar ao sol bem pago se fazem, com poucas excepções, as letras actuais.


Prefiro o côté "história trágico-marítima".

domingo, outubro 12, 2003

Outono

Ó árvore alta do olhar, a desfolhar:
agora é estar à altura do furor
de excesso de céu que os ramos lhe atravessa.
Cheia de verão, parecia funda e espessa,
fronte quase a nos pensar, familiar.
Do céu agora estrada o interior
se lhe faz. E o céu talvez não nos conheça

Ousado extremo: que nós em voo de ave
nos lancemos no novo aberto espaço
que se nos nega e ao nosso ardente anelo,
pois só lida com mundos. Do nosso ourelo
as ondas-sentimentos relação suave
buscam, e consolam-se no abraço
do ar, como bandeiras, no aberto em flor -
..............................................................

Mas pra a árvore copada vai saudade e amor

Rainer Maria Rilke, Muzot, fins de Outubro de 1924
trad. Paulo Quintela




sábado, outubro 11, 2003

Relembro a inquietação - lida ou ouvida já há uns anos atrás - de um intelectual francês em relação à web: qualquer pessoa poderia publicar qualquer coisa, sem o policiamento, a intervenção de um conselho redactorial.
O problema é, aliás, menos perverso do que à primeira vista parece e hoje relembro a advertência apenas pelo pitoresco do injustificado, como lembramos os medos suscitados pelo caminho de ferro, ou pelo telefone quando foram inventados.
Soube, pelo Aviz, do projecto do Leitura partilhada.
Um dos próximos livros, depois de Ulysses, é a RTP.
Pobre Eça esquecido, de quem Bloom, o divulgador incómodo, diz estar próximo, nos seus últimos escritos, da escrita proustiana. Está? Não está? Não querem falar sobre isso?
É uma mera sugestão.
Referendo

O medo que toda a gente tem do referendo...
Dos bem aos mal-intencionados, teme-se que o povo não "compreenda", que vote "mal". E depois, perguntam-se como seria, se o "não" ganhasse, "ficar à margem da "Europa", e mais profundas questões.
Do referendo podem advir consequências graves para Portugal? Poderão (e, em qualquer dos casos, ganhe o "sim" ou o "não"....)!

Mas escolher o povo o seu destino, optar entre várias caminhos, não é isso a democracia?

Ou o futuro está quase pré-traçado, e é uma questão "técnica" chegar lá?
Se é assim, agradece-se a exposição do método que permite discernir esse futuro, para que não se atrapalhe parusias, com o nosso dessaber.

Por enquanto, não iniciado nos mistérios, lobrigo apenas, a arrogância de um nacionalismo francês de má "cuvée", e algumas ameaças torpes feitas a nações europeias.









sexta-feira, outubro 10, 2003

Linguas mortas

Das Mémoires do Cardinal de Bernis, a conversa entre o jovem Bernis e o Cardinal de Fleury:
"
Je vis vers la fin de ma harangue que le front du Cardinal s'obscurcissait; il m'interrompit avec humeur, et me dit avec dureté: «Oh monsieur, tant que je vivrai, vous n'aurez point de bénefices. - Eh bien, Monseigneur, j'attendrai», répondis-je, en lui faisant une profonde réverance.
J'apercus, en me retirant, que le Cardinal avait trouvé le mot bon: ce fut lui qui le divulga. Et toute la bonne compagnie de la cour et de la ville l'accueillit avec applaudissement. On trouva ce mot simple, noble, courageaux et décent. Il blessait un veillard et le désarmait en même temps. Ce mot fit la plus grand fortune. Tout le monde en voulut connaître l'auteur; on était curieux de voir un jeune homme qui avait osé donner un coup de patte à un ministre absolu. Ce mot, qui est resté célèbre, m'a paru cadrer si bien avec les événements de ma vie, que je l'ai pris pour divise, et je dis aujourd'hui comme em 1742: J´attendrai.
Au reste, le Cardinal ne me fit pas attendre longtemps: il mourut en 1743."




quinta-feira, outubro 09, 2003

Les mauvais pas

Trazidos pelo google vieram parar ao Impensavel: um leitor que queria saber como se fabricava graxa e deparou-se com o texto de Eça sobre pessoas que gostam de explicar como se fabrica graxa; outro, em busca de receitas, encontrou o Cocktail Casanova.
Impensavel agradece
a referência no Cenarios dum País
Algazarra tremenda de "estudantes" e agora que acabou estou eu sem sono, irritado, a digerir a minha fúria quase homicida. Logo, às nove horas, tenho de estar fresco - não vou estar - tenho de dar o meu melhor - on verra - que o café me ajude.

Aproveitei e acabei de ler o "Dyonisos à ciel ouvert" do Marcel Detienne, sete páginas que ontem o sono - ontem tinha sono... - não me deixara acabar de ler.

Ante de voltar a por na estante o Emily Dickinson, reli o "Oh Shadow on the Grass!/Are thou a Step or not?"
Os Lares Viales protegem os passos dos viandantes, mas a sombra indecisa do que será quem a protege?

O sono chega - melhor, regressa - enfim.
E disperso-me, esqueço-me do Cardeal de Bernis à porta da Académie, em perigo de imortalité e do Zé Fernandes para lá de Tebas.

quarta-feira, outubro 08, 2003

Começo a delinear os livros deste Outono.
Para Novembro, "O monte dos Vendavais", relembrar o narrador que sabe, porque doente (depois da caminhada forçada pela hostilidade, melhor, pela indiferença de Heathcliff), escuta a velha criada que vem costurar junto dele, "fazer-lhe companhia", por vezes por pouco tempo, tem que fazer, promete voltar logo, recomeça a contar.
Aqui e aqui fala-se dos tempos passados.
Na imprecisão (desejada?) das descrições reencontro, malgré tout, a praia da minha infância.
Mas não era imensa, ainda. Era grande, com barracas ao pé das escadas e os chapéus - os guarda-sóis - com e sem saia, perto do mar; entre, o caminho, num equilíbrio difícil de segurar baldes com forminhas, ancinhos e pás, bóias e dar a mão à criada, de cinzento claro e branco, como as manhãs a essas horas.
E falta: o homem dos barquilhos, as mulheres dos vários bolos, dos de Ançã e das queijadas de Pereira, as mulheres dos camarões e, deixando os comestíveis, os teatros de robertos, o Catitinha, as tardes no jardim e no Tennis, na piscina - onde se quase gelava em aulas de natação com o Prof Barrué, as matinées infantis no Casino - e as garraiadas - o Pátio das Galinhas, a Caravela, o Bazar 111, a Havaneza, os sorvetes na esplanada - os antigos, antes de deitaram abaixo as casas.
De tudo isto sobrevive incólume apenas a Havaneza.
E não colhe desculparem-se com o dizer que tratavam apenas de ofícios em extinção. Eu trato do ofício do ser criança com competência, espantadas incessantemente mesmo perante o igual e o comezinho, e com medos - de algumas conchinhas, de pulgas da areia, transparentes e minúsculas, do Catitinha, de deixar cair o sorvete na areia.

Dr. Paulo Pedroso

Creio que não simpatizo muito com o Dr. Paulo Pedroso que, desatento que sou à realidade política nacional, quase não conhecia.
Também não sou socialista.
Mas sempre pensei que a prisão preventiva decretada era uma gritante ilegalidade e, pior do que isso, injusta, por ter a convicção pessoal de que se encontra totalmente inocente dos factos por que é indiciado.

Dito isto: se é certo que todos os dias decisões dos tribunais de 1ª Instância são revogadas pelos tribunais superiores não deixam essas revogações de terem carizes diferentes consoante a sua substância.
No caso: as medidas de coacção obedecem, desde logo, a um princípio de proporcionalidade (artº 193º do Código do Processo Penal) devendo ser "adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas". É o critério que a lei enuncia.
Veja-se, agora, em grau crescente de gravidade, quais são elas: termo de identidade e residência; caução, obrigação de apresentação períodica; suspensão de funções, de profissão e de direitos; proibição de permanência, de ausência e de contactos, obrigação de permanência na habitação - a chamada prisão domicilária; e, por último, a prisão preventiva.
Os Senhores Desembargadores decidiram-se pelo termo de identidade e residência...
Não tendo havido alterações significativas, como já se apressou a dizer o advogado daquele deputado, isto quer dizer que o termo de identidade e residência teria sido a medida adequada a aplicar quando o deputado foi ouvido pelo juiz de instrução, em Maio... nos antípodas do que foi então decidido
Ou seja, a prisão preventiva foi ilegal, termo que, tanto o deputado como o seu advogado já usaram para classificar a medida de coacção decretada pelo juiz de instrução.
O que, entre outras coisas, tem o efeito de constituir o Dr. Paulo Pedroso no direito a uma indemnização, conforma se pode ler no artº 225º do mesmo código: "Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade". O acórdão, ao julgar como suficiente o termo de identidade e residência, abre caminho para que, seja qual for o desfecho do caso, haja lugar a indemnização.
Quem paga? Somos nós.

Conviria, no entanto, que o Dr. Paulo Pedroso se lembrasse, quando pedir a indemnização choruda a que tem direito, que tem o dever de contribuir para alterar o inacreditável código do processo penal, em parte produto da demissão cívica do P.S....



terça-feira, outubro 07, 2003

O caminho entre a casa e a escola - mais tarde o liceu, que ficava para os mesmos lados - pela parte antiga da cidadezinha era agradável. De manhã, no Inverno, havia no passeios estreitos braseiras de latão a atear, cobertas de papel de prata. À hora do almoço havia quem, no Verão, assasse sardinhas na rua. No regresso, à tardinha, de novo algumas braseiras a espevitar, os preparativos para o jantar. E idas e vindas da mercearia, do lugar da fruta, conversas de vizinhas.
Hoje, esse caminho é um desolado deserto.
O ermamento não é a consequência inevitável do "passar do tempo", do "progresso". Tem causas precisas: a lei do arrendamento e o seu corolário, o recurso ao empréstimo bancário - mais facilmente concedido para "habitação nova" do que para restauro, o novo riquismo das concepções urbanísticas de preservação de cenários mais do que de estilos de vida, de modos de estar.
Limerick 16

There was a Young Lady of Portugal,
Whose ideas were excessively nautical:
She climbed up a tree,
To examine the sea,
But declared she would never leave Portugal.

"The book of nonsense", Edward Lear
Há textos que vivem da exumação de afectos, de sentimentos. Nada mais desagradável do que esse querer mostar o que já foi sem que haja a suspeita de qualquer crime, apenas por mera precaução, por um zelo excessivo, inútil.

segunda-feira, outubro 06, 2003

Amanhã era o dia em que, quando andava na escola e nos primeiros anos de liceu, as aulas começavam.
Lembro-me do meu primeiro dia de escola a sério, sem plasticinas nem guaches, sem o "Livro da Capa Verde" que havia sucedido à "Cartilha Maternal".
Ontem, via o documentário sobre Brel na "arte" , as datas das entrevistas embaraçavam-se nessas outras desses começos, impensada banda sonora dos sentimentais tempos silenciosos que lembravam.
Impensavel e o serviço público


Pronto a ler:

Projecto de constituição europeia, aqui

Relatório da presidência da convenção aqui.

Na página 21 do documento pdf do relatório da presidência note-se o Anexo III - relatório alternativo.
Impensavel agradece

O Almocreve das Petas adicionou o impensavel à sua lista de blogues.
Aproveita-se para recomendar o post sobre o artigo de António Guerreiro.
e toda a solidariedade com as desventuras no pequeno slam.

domingo, outubro 05, 2003

"O espanto de Gonçalo era como o Republicanismo alastrara em Portugal - até na velhota, na devota Oliveira...
- Quando eu andava em preparatórios existiam simplesmente dois republicanos em Oliveira, o velho Salema, lente de Retórica, e eu. Agora há partido, há comité, há dois jornais. E há mesmo o Barão das Marges com a Voz Pública na mão, debaixo da Arcada..."
André Cavaleiro acrescentava que "Portugal, nas suas massas profundas permanecia monárquico, de raiz. Apenas ao de cima, na burguesia e nas escolas flutuava uma escuma ligeira, e bastante suja que se limpava facilmente com um sabre..."
A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queiroz

Veio a república, e veio o sabre. Republicano.

sábado, outubro 04, 2003

These tested Our Horizon -
Then disappeared
As Birds before achiving
A Latitude.

Our Retrospection of Them
A fixed Delight,
But our Antecipation
A Dice - a Doubt -

Puseram-nos à prova o Horizonte -
E depois desapareceram
Como pássaros antes de atingiram
A Latitude

O nosso Retrospecto
Deleite definido,
Mas posso Antecipar
Um Lance - Dúvida.

Emily Dickinson, tradução de Jorge de Sena,
este sábado.

sexta-feira, outubro 03, 2003

Este blog sobre filosofia, tranquilo e pensativo, que recusou com serenidade as regras do jogo bloguístico - sejam elas e ele os mais lícitos - é um bom sítio para se ir passear.
Chama-se - chamou-se? - (In)totalidades
O Impensavel agradece

O Forumania refere o Impensavel na sua lista.
Breve jornada a Lorbrulgrud

Entrei num café de proví­ncia. Por entre a cerração do sono divisei, num tabuleiro, entre outras formas disformes e monstras, uma descomunal rodela enviesada, coberta de creme amarelo: era o que, quando eu era pequeno, se chamava pata de veado, um bolo pequeno, que se comia na praia; duas monstruosas semiesferas unidas por um magma amarelo alaranjado e parcialmente fundido era o que eu conhecia sob o nome de bolas de Berlim; uma massa gigantesca, compromisso entre um crustáceo hostil e um folar, revelou-se um "croissant"; uns alguidares de tamanho regular com uma massa preta deduzi que fossem pastéis de nata. Na mesma prateleira, na mesma escala de grandeza e suponho que de metamorfose repousavam outros colossos de pastelaria.
Lembrei-me do perfume das rosas do Principe do Leopardo, transformado num violento odor de lupanar sob os efeitos do sol siciliano e meditei sobre o que teria produzido um efeito similar em relação aos bolos.
A meio das minhas divagações entrou uma cliente, de bata de laboratório, e disse que "ia querer um café e um bolinho".
Apercebi-me das dimensões swiftescas do meu paternalismo, despedi-me, paguei, saí.
Advogado, vice-presidente de uma grande companhia de advogados, especialista em investimentos bancários, escrevia assim:

We do not prove the existence of the poem.
It is something seen and known in lesser poems.
It is the huge, high harmony that sounds
A little and a little, suddenly,
By means of a separate sense. It is and it
Is not and, therefore, is. In the instant of speech,
The breadth of an accelerando moves,
Captives the being, widens - and was there.

Chamava-se Wallace Stevens
O poema completo aqui

quinta-feira, outubro 02, 2003

O Impensavel agradece

Ao Mata-Mouros a inclusão do Impensavel nos blogues "estimulantes".


Também o Quarta Vaga, ainda um projecto de blog, adicionou o Impensavel aos seus links.
Referendo Europeu

Queria manter o Impensavel longe das coisas do dia a dia. Impossível, porém, ignorar a questão.

O que se passa seria um escândalo se não fora previsível.
A "classe política" portuguesa nutre pelas decisões do "povo" a maior das desconfianças. Ao pessimismo paternalista do anterior regime que, em parte, aliás, adoptou e faz parte do seu "hidden curriculae" mental, veio juntar-se o actual, filiado próxima ou remotamente no marxismo, que considerava o "povo" - ou parte dele - , incapaz de se libertar, por si, dos grilhões que o subjugavam (veja-se, sobre o assunto, Sir Isaiah Berlin, "Realism in Politics" ) e de, por isso, escolher o seu destino sem o auxílio mais ou menos organizado de luminárias benfazejas.

O desconhecimento do que "realmente está em jogo", as complexidades da política europeia ou o desinteresse do "povo" (ou seja, o medo de que o "povo" decida "mal") são as desculpas que os membros da "classe política" - os que não querem o referendo e os que fingem que o querem - dão para que o novo tratado europeu não seja submetido a votos (os melhores deles pensarão, talvez, que um eleitorado "bem informado" votaria "bem", mas que com "este" - connosco - é um risco).
Uns e outros comungam, ainda, sob a capa do "realismo político" na mesma crença, na inevitabilidade, no sentido único e, por isso, afligem-se com isto de poder a vontade popular vir atrapalhar a capitulação provinciana perante as potências, perante um inelutável "estado das coisas" que eles há muito decidiram.
Para consumo interno arranjam-se desculpas e pretextos que nos entretenham. Irrelevantes, mesmo os mais bem tecidos.

Os pecados do passado, dizia alguém, projectam longas sombras.
Eu queria viver no Maine, ou em Sussex, ou no Tennessee, numa casa sóbria e velha, escrever coisas límpidas, avesso a comparações, dotado na arte da elipse, olhar quieto paisagens planas lineares e pias - senão esparsos outeiros sinópticos, algum pasto - e nelas pouca gente, a metáfora de tudo isso ágil.
Mas nasci em Lisboa, pisco de olhos, moro sei lá onde e nas elipses tão amadas não sei fazer caber o que não digo.

quarta-feira, outubro 01, 2003

Perguntavam-me "se ainda ia usar as T-shirts, se já as podia guardar". Respondi que sim com a alegria de um exilado que, regressado à pátria, se desfaz dos andrajos que usou num desterro amargo.
Carta de Camilo Castelo Branco

"Il.mo e Ex.mo Sr.

Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país durante quarenta anos de trabalho.
Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego.
Ainda há quinze dias podia ver cingir-se a um dedo das minhas mãos uma flâmula escarlate. Depois, sobreveio uma forte oftalmia, que me alastrou as córneas de tarjas sanguíneas.
Há poucas horas ouvi ler no Comércio do Porto o nome de V. Ex. a Senti na alma uma extraordinária vibração de esperança.
Poderá V. Ex. a salvar-me? Se eu pudesse, se uma quase paralisia me não tivesse acorrentado a uma cadeira, iria procurá-lo. Não posso.
Mas poderá V. Ex. a dizer-me o que devo esperar desta irrupção sanguínea nuns olhos em que não havia até há pouco uma gota de sangue?
Digne-se V. Ex. a perdoar à infelicidade estas perguntas feitas tão sem cerimónia por um homem que não conheceu."

Li e reli esta carta, uma das últimas que escreveu.
A primeira impressão foi má: afinal, Camilo era uma glória nacional, os seus problemas de olhos há muito conhecidos e lastimados nos jornais, um bilhete cortês e simples teria bastado, sobejado, para que o médico acorresse a observar o Escritor.
Lastimei o desejo de efeito, o mau gosto, a pletora retórica, o exibicionismo da desgraça, lamentei o meu sorriso diante do que me pareceu uma falta de escrúpulos perante si mesmo e da própria dor, e eis que, aqui e de repente, reconheço onde estou, a mão que me trouxe para cá. Indigno-me, rio, comovo-me.
Os grandes escritores não têm correspondência particular

O Mar Salgado fez ontem uma amável referência ao Impensável e incluiu-o nos blogues "boa onda".
Agradeço reconhecidamente.

Ó noite que vais crescendo
Tão cheia de escuridão,
Tu és a flor mais bela
Dentro do meu coração

Do Cancioneiro e citada por Pascoes, na "Arte de Ser Português"
Foi ontem o dia em que voltava, anos a fio, da outra casa, na praia.

Um gesto que ficara então o reavia.
Do pó, do cotão, do atrito morno da ausência já inútil e estranho, pousara um livro, as mais das vezes ou, retido, esquecera de vez o que esquecia.