segunda-feira, setembro 29, 2003

"Chaque fois que le Temps me martyrise, je me dis que l'un des deux doit sauter, qu'il n'est pas possible de continuer indéfiniment dans ce cruel face a face..."

Cioran, De l'inconvénient d'être né
A menção que o Homem a dias fez ao Impensavel provocou um inesperado afluxo de visitas.

Sinto o embaraço do desleixado que, perdido o hábito de receber e visitado sem aviso por amigos que há muito não vê, fica sem gelo e água de picos à primeira rodada.
Suetonius Tranquillus, afirma o prefaciador da minha edição da Vida dos Doze Césares, é surpreendentemente moderno.

É uma advertência necessária, para que não nos deixemos cegar pela transparência do texto, feita, em parte, de uma coloquialidade ao gosto de hoje.

Esquecer que a limpidez dos seus textos é espessa far-nos-ia incorrer no risco de lermos Suétonio como um "pastiche" dele mesmo.

Suetonius, De uita Caesarum, Divus Claudius, XXXVIII:

"Irae atque iracundiae conscius sibi, utramque excusauit edicto distinxitque, pollicitus «alteram quidem breuem et innoxiam, alteram non iniustam fore»."

A polidez das divindades consiste na brevidade e na inocuidade.

domingo, setembro 28, 2003

"Salomon a dit avoir tout vu sous le soleil. Je pourrais citer quelqu'un qui ne mentirait point, quand il dirait avoir vu quelque chose de plus: c'est à dire, ce qu'il y a au-dessus du soleil, et ce quelqu'un est bien loin de s'en glorifier"

"Salomão disse ter tudo visto sob o sol. Eu poderia citar quem não mentiria quando dissesse ter visto algo mais: ou seja, o que há acima do sol, e esse alguém está longe de por tal se enaltecer"

Louis Claude de Saint Martin
Citado por E. Cioran
in "Essai sur la pensée reactionnaire"

sábado, setembro 27, 2003

Voltando a Eça
Exiguidadade, dizia. Duas e diferentes: a do leitor, obrigado desde logo à inverosimilhança, à implausibilidade jacíntica ( a sua fortuna pessoal, quase impossível no Portugal de então, os "gadjets" do 202, os seus paradoxos), de onde, no entanto, tem de partir, exiguidade aumentada pela abundância de referências, de "locais" de interpretação que, também, abundantemente, se anulam - O Zé Fernandes do excurso ao Sacré Coeur, e o que sobe as serras no burro de Sancho Pança, o Zé Fernandes intérprete dos nossos pasmos, na busca de razoabilidade e o Zé Fernandes das paixões infames...

E exiguidade de Jacinto, que é de outra natureza, uma exiguidade da distância consciente entre o eu e o mundo", de Denkraum, enquanto "acto fundador da civilização humana" (Aby Warburg e a História como memória (António Guerreiro, Revista História das Ideias, Vol. 23, 2002 pgs. 389 e sgs) e de que Jacinto inteiramente prescinde de refundar em si, com o seu utilitarismo (Suma potência x Suma ciência = Suma felicidade)
Essa distância fundadora é, de facto, inexistente ou exígua num Jacinto que se confunde, se dissolve na cidade: "E depois (acrescentava), só a Cidade lhe dava a sensação, tão necessária à vida como o calor, da solidariedade humana. E no 202, quando considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris dois milhões de seres arquejando na obra da Civilização (para manter na natureza o domínio dos Jacintos!) sentia um sossego, um aconchego, só comparáveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no seu dromedário, e avista a longa fila da caravana murchando, cheia de lumes e de armas..." (itálicos do bloguista)
A solidariedade - e a fraternidade - jacintiana com seu semelhante citadino é forjada, porém, na solidariedade de produção de conhecimento, de significado: "Nem este meu super-civilizado amigo compreendia que longe de Armazens servidos por três mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergeis e lezirias de trinta provincias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fábricas fumegando com ânsia, inventando com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima de fios de telegrafos, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante dos omnibus, tramways, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões de de uma humanidade fervilhando, a ofegar, através da Polícia, na busca dura do pão ou sobre a ilusão do gozo - o homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver".

Em oposição, as serras - e a natureza - não serão tanto a "natureza" fisicamente falando, quanto um locus, ou um objecto não epistemológico, não diferenciado , que não podemos interrogar - "Depois, em meio da Natureza, ele assistia à súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores" - e que, ao não nos questionar, nos priva de identidade, nos hostiliza: Jacinto "estava aí como perdido num mundo que lhe não fosse fraternal"

E onde está Zé Fernandes?
Este sono, criado precavido, traz-me a noite, aberta já e, num prato azul de que me lembro, uma mão-cheia de ruídos lá de fora. Escolho a conversa ocasional, debaixo da janela, e o táxi que passa devagar.

sexta-feira, setembro 26, 2003

Mais aventuras do "Zé Fernandes em Paris" amanhã
Perco o fio à meada com este escrever on line e depois emendo os post, corrijo gralhas, pontuação,"apuro-os", faço a "toillete da frase" de que falava Eça.
Além das "grandes mondaines" e dos historiadores também os bloguistas incipientes sabem que "nada muda tanto como o passado"
"A Cidade e as Serras": um narrador tão solícito e amável quanto pouco fiável. Em breve ficamos, como Jacinto, sem apoios, sem bagagem e referências, entregues a nós mesmos, pobres, exíguos, à mercê das serras, do exterior imenso. A ele - e a nós, leitores confundidos, mistificados - caberia então a (re)criação da distância a partir dessa exiguidade, refazer o exterior ou possibilidade de exterioridade "salvífica".
Uhm.... continuar a conversa (com Eça...)



quinta-feira, setembro 25, 2003

Fico abismado quando, a propósito de um "dernier goût" minhoto ou alentejano, há gente que relembra, com sensibilidade, o pequeno e quase desconhecido restaurantezinho em NY - quase sempre NY - onde... -e segue-se um relato de delicadas e insuspeitadas similitudes, ou da sua impossibilidade.




As minhas experiências gastronómicas são acanhadamente auto-referentes: se é peixe que como e o peixe está bom, limito-me a sentir de forma palatal e impoluta o prazer de quem come bom peixe bem cozinhado. "Mutatis mutandis" para as más experiências. Nunca extraí de uma posta de peixe mais do que o sabor de uma posta de peixe: nem justificações de crenças, nem invocações de estados de alma.
Relembro, por vezes, um gosto passado, mas lembro apenas o gosto, o sabor, em estado puro, liberto de outras memórias.





Retirei um "post" de há horas atrás. O pretexto que me dei para o fazer foi o mau funcionamento do "link" de que dependia, em parte, a sua compreensão. O verdadeiro motivo, porém, foi outro: não deixar que o imediato impere, comande.
A insignificância do "post", o reduzido - eufemismo para a meia dúzia - número de leitores, a certeza de que ninguém o citou como fonte deixam-me quase tranquilo.

quarta-feira, setembro 24, 2003

Tarde de madraçaria à secretária. Leio um artigo sobre Warburg que entrecorto com consultas às livrarias "on line", mas não encontro o estudo sobre Dürer. Encontrei, no entanto, os Ensaios Florentinos que adicionei ao "panier".
Espreito, várias vezes, a freguesia do blog. Fraca.
Quando comecei o blog, no já longínquo anteontem, pensei-o como um diário, hesitei ainda - pouco, concedo - em torná-lo público. Opção tomada e eis-me transformado num merceeiro calculista, com vistas invejosas à "concorrência" que diminuem o gosto da leitura e me provocam sofrimento moral.
Vou jantar fora.



Na Veneza de Casanova, ainda na do século XIX, impressionavam-se os visitantes (entre eles, o "nosso" 7º Marquês de Fronteira, D. José de Mascarenhas) com a ausência dos "ruídos da civilização": os dos rodado das carruagens, dos cascos dos cavalos.
Sobre esse silêncio enganador, jocoso, constrói Casanova a sua vida.
"Le genre humain est excessivement avide de récits" traduziu Montaigne do Natura Rerum de Lucrécio. Com Casanova, essa avidez mesma, libertária, converte-se em núcleo fundador do eu de que todos somos ainda herdeiros.

terça-feira, setembro 23, 2003

O protegido do Cardeal de Bernis, Casanova, inspirou a receita.
Dedico às vítimas da tradição inventada que fez do Verão uma estação aprazível e destes dias uma antecâmara do negrume solisticial em que os sentidos sucumbem.

Cocktail Casanova

1 orange
1 cuillerée de bitter (campari)
1 cuillerée à café de gingembre
4 cuillerées de Cognac
2 cuillerées de vielle cure
1 pincée de poivre de cayenne

Il est des circonstances où la fatigue, le surménage, la sobrieté demandent un secours.

Voici donc une formule, longuement eprouvée, pour repondre à ce besoin.

De plus, ce melange coup de fouet ne se prend pas avec la grimace de dégoût dont s'accompagne souvent l'ingestion des remèdes.

Pressez l'orange.

Au fond d'un verre, mettez le poivre et le gingembre.
Versez dessus le bitter, le cognac et la vielle cure. Metiez au refrigerateur, dans le freezer même.

Au bout d'une demi-heure, sortez et ajoutez le.jus d'orange dans le verre glace.
Buvez et attendez le résultat.

Il est suffisement rapid...
in "Les dinêrs de Gala", Salvador Dali



Começo do Outono.
Depois do calor opressivo, da luz áspera, os dias suaves, a sombra que renasce e funde na incerteza os tons.
Sobre eles, a escarlata do Cardeal de Bernis, das suas Mémoires onde descubro um homem de bem consigo mesmo e quase melancólico, preocupado por se haver perdido a "art de raconter" que os súbditos de Luis XIV cultivavam.


segunda-feira, setembro 22, 2003

(A minha escrita é esquinada, dura. Quantos anos sem escrever uma carta?)
Eça de Queiroz nas Cartas de Inglaterra descreve a Lecture-Season : "Os assuntos são tudo - desde a ideia de Deus até à melhor maneira de fabricar graxa. E os conferentes são todo o mundo - desde o Professor Huxley até um qualquer cavalheiro, o senhor Fulano de Tal, que sobe à plataforma a contar as suas impressões de viagem às ilhas Fidji, ou aptidões curiosas que observou no seu cão..."

Os blogs são a vitória do cão do senhor Fulano de
Tal e do seu dono, este último espécime quase mudo em Portugal no tempo em que Eça escrevia
Mas ei-lo aí, agora, conferenciando.
Impensável era, até ontem, a existência deste blog.
Há muito convencido de que nada tenho a dizer seja a quem for, soçobro ao espírito Hyde Park cibernético.