domingo, dezembro 21, 2003


Por teimosia "gourmet" e "gourmande" de meu Pai manteve-se até tarde o fogão a lenha. Por concessão à  modernidade e creio que ao pessoal, somou-se a esse fogão "a sério", um outro, eléctrico, marca Leão, com um design optimista e sorridente que passou anos de quase inteiro ócio. Quando me desfiz dele, há dois anos, levado pelas exigências das novas receitas, tive pena. A ele devo algumas boas lembranças. A grande alegria que me deu, porém, foi há muitos anos: um choque espectacular e formidável que quase finava uma cozinheira velha com quem eu antipatizava. Lembro-me do alarido e de, passado o perigo, ir espreitá-la à  copa, onde recolhera. Já convalescente, mas ainda combalida, embrulhada num cobertor de papa que exigira lhe trouxessem por julgar a lã bom remédio para os choques eléctricos, bebia chá, assistida pelas "de fora" que a acalentavam assegurando-lhe que tivera sorte em não ter ido desta para melhor.
Mas era no outro, no fogão a lenha, preto, com muitos amarelos que no dia de Natal, logo de manhazinha, estavam os presentes que o Menino Jesus, ajudado pelo Pai Natal lá pusera. Os meus e os das empregadas(os presentes das outras pessoas tinham vindo, por uma deferência do Pai Natal, pela chaminé do fogão da sala). Tudo isto se passava muito cedo, já que o fogão precisava de horas para aquecer. Nunca me deu um prazer comparável ao choque da cozinheira mas, discreto e com uma maldade vagarosa de outras eras, foi ao longo de anos responsável por pequenas queimadelas e aflições que arrancavam sussuradas pragas e aiaiais vivazes. O fogão a lenha, o fogão, por justa antonomásia, não chegou aos meus dez anos. Hoje, se o afã da modernidade o não levara, podia dedicar-me à "cuisine lente".

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