terça-feira, dezembro 02, 2003

MIL MILHÕES DE EUROS

Em escudos, 200 milhões de contos.
É o montante do crédito malparado referente aos empréstimos para habitação, segundo se lê numa notícia do Público.
Resta rezar para que haja alguma retoma interna antes que, por qualquer motivo, o banco central europeu decida subir as taxas de juros.
Seria um interessante encontro com a realidade.
A culpa - há culpa - é dos sucessivos governos que, por omissão medrosa, ou intencionalmente, resolveram liquidar o mercado de arrendamento que, no resto da Europa e do mundo, continua florescente.
A política que conduziu a este estado de coisas apoiou-se em dois princípios - ou melhor, na falta de princípios: o desprezo mais absoluto pela propriedade privada, e no paternalismo intervencionista do estado - à custa alheia.
O estado português parece apostado em entregar os portugueses, desde a mais tenra idade, primeiro na mão dos empreiteiros, depois na dos bancos, a quem ficam endividados por 20,30 ou 40 anos. Cimento e dinheiro fácil para o sector financeiro, com garantias reais (a hipoteca), eis o retrato de parte do "desenvolvimento" português.
A política do arrendendamento originou outras consequências catastróficas: os centros antigos das cidades não foram renovados e encontram-se em estado de ruína e despovoados: perderam-se memórias e modos de viver e um precioso património - já que não há dinheiro para a restauração dos imóveis.
Conseguiu-se, ainda, empobrecer parte da classe média, que se viu obrigada a vender, barato, imóveis que davam prejuízo, favorecendo as grandes empresas que os compram e os mantém como "activos". Quando os restauram, não os colocam no mercado de arrendamento, usam-nos para instalarem serviços, com a cumplicidade das câmaras municipais.
A "nova" "lei do arrendamento" não vai modificar este estado de coisas.
Pormenor interessante, o arrendamento comercial não é alterado, contribuindo para que o comércio viva numa situação de "dumping", o que permite a sobrevivência de empresas mal geridas. Pouca gente sabe que há lojas famosas em Lisboa - e noutras cidades, país fora, a pagar rendas inferiores ao valor que um casal da classe média tem de dispender na prestação mensal de um apartamente de 4 assoalhadas a 30 km de Lisboa... que há bancos que pagam pela renda das suas agências na província 20 e 30 contos. Pouca gente sabe que o governo não tenciona modificar esse estado de coisas, talvez por lhe parecer que tudo está bem, ou meramente para não ter aborrecimentos.
Estas legislações não se traduzem apenas num despudorado e verdadeiro confisco para os proprietários - o que, por si, nos deveria fazer interrogar sobre a democraticidade dos nosso estado e da nossa sociedade - elas moldam as nossas cidades e os nossos quotidianos.
Parece, contudo, que não são um assunto discutido ou a discutir. Talvez por mera ignorância, talvez por não serem "fashionable", nunca encontrei, nos blogs que leio, por exemplo, a menor alusão ao assunto. Os bites são gastos, por vezes, em materias secundaríssimas e momentâneas, irrelevantes na sua maior parte, com a profundidade de uma pequena e citadina poça de água.
E no entanto... pouco há de mais elucitadivo sobre o modo como o papel do estado foi e é encarado em Portugal, sobre as concepções económicas veramente vigentes, sobre a diferença entre declarações de "aggionarmento" e a prática, onde o atraso sobrevive, se perpetua.
E sobre nós, todos perto ainda do bocadinho de terra, e de medos ancestrais de misérias rurais, da falta de uma telha - e que resolvemos do pior modo.
Talvez por isso, subsista, para espantar medos e memórias, esta falta de cosmopolitismo que consiste na preferência e no entusiasmo pelo longínquo, em detrimento do que nos rodeia e directamente nos afecta e nos diz respeito.

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