Há anos encontrei numa estante mais esquecida um livro sobre o ataque japonês a Pearl Harbour.
O autor, que vivia na Puhahou Street, em Honululu, resolveu contar o que viu nesse dia de Dezembro, fez, há três dias, cinquenta e dois anos.
O tom é este:
"O sr. e a sra. Frear, com quem vivo na rua de Punahou, já estavam sentados à mesa quando regressei [do quiosque onde tinha ido comprar o jornal naquele domingo de manhã]. Dei o jornal ao sr. Frear, que nos leu os últimos escandalozinhos, enquanto comíamos os nossos pastéis folhados e o presunto. Os divórcios eram muito numerosos em Honolulu, agora, ia ele lendo... Leu, depois, que nós devíamos enviar lâminas de barba para os soldados britânicos, porque havia falta de aço, e nada satisfazia mais os Tommies do que uma barbeadela a preceito. O estrondear, lá fora, continuava.
Yamato entrou a correr:
-Muitos aviões lá fora! - exclamou êle.
- Venham ver!
Guiados pelo pequeno japonês, fomos até à porta de entrada. Vimos uma esquadrilha de aviões, lá muito em cima. Sôbre Pearl Harbour via-se o céu salpicado das pequenas nuvens de fumo dos canhões anti-aéreos.
- Assim é que é - disse o sr. Frear.- Temos de estar preparados para o que der e vier.
Miss Claire, a nossa vizinha, que em tempos fora professora da Escola de Punahou, onde ensinou a ler os avós, pais e filhos da cidade, entrou a correr em nossa casa.
- Estamos a ser atacados! Os japoneses estão a bombardear Oahu! - disse ela, olhando comprometida para Yamato e para Hatsu a pequena espôsa dêste.
- Não! São apenas exercícios. Não se assuste, Claire - disse o sr. Frear e todos nós concordámos, convencidos.
A pobre miss Claire retirou-se, certa de que fôra vítima dum boato.
Poucos minutos depois, os factos vieram dar-lhe razão. Quando estávamos a acabar de almoçar, vimo-la novamente a correr através do jardim.
- Se não acreditam, abram a telefonia exclamou ela. quando entrou.
Dei a volta ao interruptor do aparelho.
«Conservem a calma. Oahu está a ser atacada. Não se trata de nenhuma brincadeira»..."
Confesso que a frase sobre a pobre Miss Claire que se retira por se julgar vítima de boato, me conquistou de imediato, a ponto de por muito tempo a usar, com leves adaptações que não a tornavam mais perceptível nem menos disparatada nos contextos em que a utilizava, totalmente a despropósito. Mais do que um "private joke", ou um "inner joke", tornou-se quase num mantra com que pretendia, julgo, aceder aos gozos da boa fé.
Não consegui ainda, mas as releituras, ao longo de anos, contribuíram para que adicionasse o ataque a Pearl Harbour ao rol dos meus agravos pessoais.
Ontem, porém, lia, mais uma vez, o "Pearl Harbour" - que reencontrei durante uma busca que tinha por objectivo o "Diário" de Stendhal - e apercebi-me que o livro, publicado ainda durante a guerra, é eficaz, uma bem escrita obra de propaganda: é difícil lê-lo a gente sem se indignar com um acto que, para além das muitas razões que há para o repudiarmos, é aqui apresentado como perturbador do nosso direito à placidez do dia-a-dia de pessoas de bem. É dirigido ao que há em nós de mais adverso à heroicidade, ao poderoso e intricado nó de preguiça frouxa que preside ao quotidiano. E ameaçando aí, no cerne mesmo da letargia, transforma-nos em candidatos a soldados audazes e implacáveis.
Impressionado, resolvi saber quem era Blake Clark, o autor. Fiz uma pesquisa no google. Depois de muito trabalho - o primeiro nome dele era, afinal, Thomas - descobri que foi professor de literatura inglesa na Universidade do Hawai, o cargo que detinha na altura do ataque, tendo pertencido depois ao OSS; de 1944 a 1970 foi um dos editores da Reader’s Digest . Ao contrário do eu que supunha, a ascensão aos Elíseos, que eu colocava no decénio de 70, deu-se este ano, em Fevereiro, aos 95 anos.
Não deixei de me assustar por ter vivido tanto o homem que, com 90 páginas de prosa perfidamente cândida e alguns truques velhos, me levaria a arrastar-me para as traiçoeiras praias do Pacífico, em defesa da pacatez que encarna em folhados de presunto e almoços sem horas.
Sem comentários:
Enviar um comentário