terça-feira, dezembro 09, 2003

Creio que é Yourcenar que nos alerta para a importância da genealogia dos actos: o abater da árvore, o esculpir da madeira, os gestos do trabalho do marceneiro de que nasceram esta cadeira, esta mesa, aquele armário. Em Portugal, onde se tem saudades até do que nunca se conheceu ou aconteceu, creio que esse exercício é comum, embora se torne, as mais das vezes, e ao contrário do que a escritora pretendia, num exercício de meras e fúteis conjecturas.
Ora, hoje acordei cedo, de madrugada e deu-me para investigar gavetas. Numa, e inesperadamente, vi o fac-símile do assento de baptismo de um antepassado meu, datado dos finais do séc. XVIII. Dei por mim a interrogar-me sobre qual seria o estado de espírito dos intervenientes que o assinavam. Não era difícil atribuir uma alegre boa disposição ao padrinho, que assina depois do pároco, numa caligrafia cuidada, o documento do baptismo do seu primeiro neto. Quanto aos restantes, é difícil atribuir-lhes mais de que a alegria amável própria da ocasião.
Abandonei, por isso, esse caminho perigoso e perguntei-me antes que horas seriam, como estaria o tempo, quais as palavras do dia a dia que se infiltrariam naquela ocasião solene: com que palavras se queixariam de um frio matinal, se frio estava naquele dia do início de Maio de 1796, ou que o que diriam à mesa, em voz baixa, ao comensal do lado e, de algum modo, percebi que é ao desconhecimento dessas palavras, hoje talvez estranhas, por desusadas, que devo o poder traçar, suportavelmente, o traço ténue até àqueles convivas distantes que, de uma forma surda e clandestina, perduram em mim os seus gestos, talvez os seus gostos e os seus espantos.
(vd. post de 11 de Dezembro)

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