segunda-feira, novembro 03, 2003

Sacré-Coeur

Atente-se no capítulo V: Jacinto vexado, por alguns "desastres humilhadores" decide vencer as "resistências finais da Matéria e da Força por novas e mais poderosas acumulações de Mecanismos", uma terapêutica homeopática condenada ao fracasso

Os esforços jacintianos provocam em Zé Fernandes o pesadelo que culmina com a visão do Ancião da Eternidade que sobre todo o conhecimento lê Voltaire, o céptico, e sorria, talvez, da nova crença racionalista, apolínea e da ausência de um cepticismo.

E após o pesadelo, a paixão por essa estranha Mme. Colombe, com os seus cabelos imensos, de uma dureza e espessura de juba brava, tal como, na Grécia, as bacantes cobertas de peles de animais, conhecida a afinidade de Dyonisos pelos animais selvagens - tigres em particular ( Mme. Colombe: ironia no nome ou uma ligação que me escapa. Há vários episódios que ligam Dyonisos a serpentes e pombas, bichos de afinidades eróticas conhecidas. Ou simplesmente, a duplicidade do citadino, do domado).

Passada a "sublime sordidez", Zé Fernandes purifica-se através de um episódio de embriaguez em que, muito visceralmente vomita Madame Colombe e se cura do acesso maníaco.
A tempo de salvar Jacinto, que morre dos tédios apolíneos: "Anulado, bocejava com descorçoada moleza. E nada mais instrutivo e doloroso que este supremo homem do séc. XIX, no meio de todos os aparelhos reforçados dos seus órgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as Forças Universais, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos séculos – estacando, com as mãos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indecisão mole de um bocejo, o embaraço de viver."

Zé Fernandes propõe, então, uma visita ao Sacré-Coeur.
Visita que quer fazer no interesse da sua (dele, Zé Fernandes) alma. O que é estranho, já que, lá chegado, não gosta da basílica, que não o interessa.
Só recentemente soube que o culto do sacré-coeur é um culto com origem no culto dionisíaco do coração, do coração que palpita (Marcel Détienne, “Dyonisos à ciel ouvert”). O bem da sua alma será restituir Jacinto à dele. E não é o Sacré-Coeur que salva, mas o caminho até lá.
Acompanhemo-los.
“E por fim logo que começámos a penetrar, para além de S. Vicente de Paula, em bairros estreitos e íngremes, de uma quietação de província, com muros velhos fechando quintalejos rústicos, mulheres despenteadas cosendo à soleira das portas, carriolas desatreladas descansando diante das tascas , galinhas soltas picando o lixo, cueiros molhados secando em canos - o meu fastidioso camarada sorriu àquela liberdade e singeleza das coisas. (....) E Jacinto murmurou, com agrado - É curioso.
Exclamação nova em Jacinto.
O que de facto, Zé Fernandes parece ter oferecido a Jacinto naquele caminho é uma nova "categoria epistemológica". Não é o campo que Jacinto encontra, o campo detestado e já conhecido enquanto categoria do conhecimento citadino ("P’ra o campo? O quê? P’ra o campo?!"), mas algo de novo, um "tertius genus" que une e integra o citadino e o "campestre". É esse "novo" que suscita a curiosidade jacíntica, o primeiro elemento a obrigar o príncipe da Grã- Ventura a marcar uma distância em relação ao que o cerca, em recriar a distância crítica em que Warburg veria anos mais tarde o acto civilizacional fundador.
E preparado Jacinto por este primeiro estremeção, criada essa distância Zé Fernandes pode fazer o seu excurso sobre a cidade, do alto do Sacré-Coeur um eloquente convite à liberdade e que, aliás, desmente soberanamente as singelezas de pobre homem das serras. Mas para quê disfarçar agora?
É no regresso do Sacré-Coeur que Jacinto desde há muito sente sede e que, encontrado um velho amigo, lhe apresenta Zé Fernandes com o seu sobrenome francês e "citadino": Fernandes Lorena.

Depois dessa jornada Jacinto é, pela segunda vez, um póstumo.

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