Há dias li a notícia da morte do recentemente desaparecido Marquês de Marialva e desde aí que tenho pensado sobre o marialvismo enquanto "tradição inventada". Também há tempo, não há muito, tinha relido a "Cartilha do Marialva", do José Cardoso Pires, que não achei tão certeira como da primeira vez que a li, e isto por que, salvo erro, são referidos como "marialvas" comportamentos que não são exclusivos do "marialvismo" português: o desdém pela "cultura livresca" é um deles; outro, a adopção de modos de estar e vestir populares, que encontramos, também, na aristocracia inglesa ou na alemã.
Divertido é o facto do Marquês de Marialva, o 4º, que deu origem ao termo, nada ter de "marialva": era um aristocrata de corte, estribeiro-mór de D. José I, e grande equitador quanto estudioso de mérito da arte equestre, o autor da "Luz da Liberal e Nobre Arte da Cavalaria". Como seu Pai, mas da Rainha D. Maria I foi o 5º Marquês estribeiro-mor; anfitrião, protector e amigo de William Beckford que dele fala com simpatia no seu "Diário", projectava o casamento de sua filha, a futura Duquesa de Lafões, com o milionário inglês. Um seu irmão, pelo casamento, Conde dos Arcos, foi o que morreu em Samora Correia, numa corrida de toiros, episódio que Rebelo da Silva aproveitou para a "Ultima corrida em Salvaterra" e seu filho, último marquês em sua Casa, criança ao tempo da estada de Beckford em Portugal, morreu novo e sem descendência em Paris, onde era Embaixador na Corte de Luis XVIII. Foi por uma sua irmã que o título entrou na Casa de Lafões, onde hoje se conserva. Mas, o 2º Duque de Lafões, marido daquela senhora e cunhado e genro dos anteriores, neto de D. Pedro II, o primeiro membro da Casa Real que estudou na Universidade do Coimbra, militar e um dos fundadores da Academia das Ciências, foi patrono das artes e conhecido por essa Europa fora como modelo de aristocrata iluminista. Beckford, que lhe foi apresentado, deixou dele uma descrição saborosa e refere-se ao francês requintadíssimo que falava. Sem resquícios de marialvismo, estes marqueses de Marialva...
Dir-se-ia ser um caso, tão comum, de uma denominação originada muito arbitrariamente, ou nos meros feitos equestres dos 4º e 5º Marqueses, não fosse a gente perceber que, com tal escolha de nome, se pretendeu filiar na aristocracia portuguesa - isto é, tornar exemplares - atitudes, em grande parte posteriores, e que lhes eram - e no séc. XVIII, à grande parte da alta aristocracia portuguesa - estranhas: uma, o desdém pelo que vem de fora; a outra, mais positiva, a rebeldia à imposição de hábitos novos.
Subsistiu esse abuso: o legitimíssimo asco a Pombal, oculto protagonista na cena entre o 4º de Marialva e Sebastião José, no episódio literário de Salvaterra, não tem por causa o ódio ao novo - que, era, aliás, consumido com alguma avidez, mas o asco pelas prepotências da política pombalina.
A esmagadora maioria dos resistentes à ditadura de Sebastião José foram pais e avós de liberais, mais do que de apostólicos miguelistas.
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