O "who is who" na Cidade e as Serras.
Jacinto mais do que filho póstumo de portugueses emigrados, é o filho da boa ventura, que o fez nascer nos Campos Elíseos, em Paris, no coração da cidade e da civilização - onde se move, príncipe, limpo dos males da hereditariedade, e isento dos males e pequenas dores que afligem os humanos "desde o berço, onde avó espalhava funcho e âmbar para afugentar a Sorte-Ruim, Jacinto medrou com a segurança, a rijeza, a seiva rica d’um pinheiro das dunas. Não teve sarampo, não teve lombrigas. As Letras, a Taboada, o Latim, entraram por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça. (...) Na idade em que se lê Balzac e Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade (...)
Mais: "Sem coração bastante forte para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o libertava, do amor só experimentou o mel". E "era servido pelas coisas com docilidade e carinho; - e não me recordo que jamais lhe estalásse um botão da camisa, ou que um papel maliciosamente se escondesse a seus olhos, ou que ante a sua vivacidade e pressa uma gaveta pérfida emperrasse.
Isto é, mais do que bafejado pela boa sorte, Jacinto é, enquanto personagem (quase?) inverosímil, a corporização de um programa civilizacional apolíneo.
Ao invés, Zé Fernandes, é o homem que vem das serras - e este plural é... plural e tão mais significativo quanto na chegada a Tormes, no cântico panteísta que entoa, Fernandes não refere "serras" mas serra: "Aqui vimos, aqui vimos serra bendita".
Mas homem das serras, e tão das serras quanto se quer fazer crer?
Quando se apresenta, afirma ser sobrinho de Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande. Mas, depois, sempre omite o nome Lorena. Por uma única vez, mas num momento particularmente significativo, quando descem do Sacré-Coeur, Jacinto apresenta-o como "Zé Lorena".
Quem são estes Lorenas, os Lorenas que Zé Fernandes era?
Nada mais do que os príncipes de Lorraine, senhores soberanos, por vários séculos, de uma dessas pequenas nacionalidades medievais que o fim do feudalismo liquidou em benefício dos nascentes estados modernos. Reformados da soberania, os Lorena eram, no entanto, reinantes na Áustria (Habsburg-Lorraine) e em França senhores de várias grandes Casa do ancién régime, a que pertencia, entre outras, a dos Duques de Guise - que tinha dado à Escócia e depois, à França uma rainha, Maria Stuart e, mais tarde, ainda outra: Maria Antonieta.
Ou seja, Zé Fernandes, em Paris era um peculiar "serrano", parente da alta aristocracia francesa (parente, entre outras, da Condessa de Grefullhe que contribuiria para a Duquesa de Guermantes de Proust)
E Eça sabia bem isso: a sua Mulher era, ela própria uma Lorena, desses de que falo... Os Lorenas portugueses nascem de uma aliança de uma filha de Luís de Lorraine, príncipe de Lambesc com o 3º Duque de Cadaval. Descendente desse casamento, um bisavô de Dona Emília de Castro conservava o nome.
Isto tudo para dizer que se Zé Fernandes não mente, oculta. E que, mais do que o portuguesíssimo Jacinto, está em casa, em Paris, na cidade-civilização. Zé Fernandes viaja incógnito, "disfarçado" de português das serras. E, no 202 é o oculto anfitrião do seu anfitrião.
Ora, perito em disfarces e embustes, ocultar-se é um dos atributos de Dionísio.
Que a uma das oposições sobre a qual se constrói a Cidade e as Serras seja a apolínea-dionísiaca é algo que não escapa a Frank de Sousa e não escapou a outros. Talvez tenha passado despercebido, por desconhecimento das geneologias - que Eça conhecia - esse sobrenome da mais alta aristocracia francesa entre os do narrador que, impressionado, murmura "Caramba!" ante os requintes do filho de Cintinho e Teresa, o serrano Jacinto de coração fraco, não era obra do acaso.
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