25 de Novembro
Lembro-me muito bem do 25 de Novembro de 1975.
Nesse ano, tinha aulas só à tarde. Começavam às três.
Acordei não antes do meio-dia, almocei, presumivelmente, num pequeno café-snack da Duque de Loulé, e fui para a Faculdade, no 38.
Chegado lá, avisaram-me que, dada a situação política, havia uma RGA. Devo ter agradecido o feriado à situação política - que desconhecia, ainda, qual fosse - e resolvi entrar no anfiteatro, para fazer tempo para o lanche na Ferrari - batido com creme, sim - onde ia depois das livrarias e de uma espreitadela à Sabóia e à Picadilly.
Percebi, no entanto, mal entrei, que fora um "faux pas": os meus colegas tencionavam barricar-se para se defender da "investida do capital" e das "forças fascistas", tudo isto anunciado com a alegria de quem se tencionava divertir o mais que pudesse. Temi pelo meu batido de morangos com creme e pelos "Les Rois Maudits", do Druon, de que tencionava ir comprar à Bertrand, na edição da "Livres de Poche", o primeiro volume.
Tendo sempre cultivado na faculdade, o mais rigoroso anonimato, saí sem problemas, durante a apresentação de uma moção de caracter ainda mais bélico do que as anteriores.
Lembro-me que fui a pé, aproveitando a tarde agradável, até as livrarias da João Soares e que espreitei a 111.
Não sei já como, apercebi-me - na livraria? - que se passava realmente qualquer coisa, e apanhei o 38 de volta a casa, deixando a Bertrand para outro dia.
Dir-me-à indignada a minha meia dúzia de leitores que tanta indiferença pela coisa pública à saída dos anos teen - à altura, nem sequer existiam, os anos "teen" - prognosticava um cínico, um indiferente. Talvez, já que foi nessa altura que li, com muito espanto e sincera admiração, os meus primeiros Ciorans; todavia, e em nome da verdade histórica, devo confessar que não posso atribuir aos "Précis de décomposition" a falta de entusiasmo pelo que me rodeava. Se calmamente desci - ou subi, segundo alguns autores - o Campo Grande, devo-o a uma leitura de Engels - se bem que já não me lembre qual - a alguns alvitres de parentas velhas que se resumiam, sabiamente, a contar com o cansaço do povo de Lisboa e com o bom-senso do do resto do país e principalmente, à indignação do sr. Gustavo (nome fictício) que um dia, numa conversa de rua, e a pretexto de se interessar sobre "os estudos" me tentou arrancar uma "consulta": o sr. Gustavo tinha arrendado uma loja de um seu prédio ao sr. Lopes (nome igualmente fictício) que abrira uma firma de electrodomésticos. A coisa sempre tinha corrido bem, o Lopes, respeitador, mas, nos últimos tempos - e foi esta conversa antes do verão temível - tinha junto ao prédio uma autêntica lixeira, caixotes de papelão, embalagens de plástico, que tudo dava um péssimo aspecto à propriedade. Tinha já chamado a atenção do inquilino, mas este desculpara-se com o movimento. Umas semanas depois, encontrei, novamente, o sr. Gustavo e perguntei-lhe pelo lixo. Que tinha desaparecido: a venda de fogões, de máquinas de lavar roupa e loiça era tanta, que já não os desembalavam senão em casa dos clientes.
Munido da certeza - que ao tempo, para mim era uma certa certeza - de que não havia "condições subjectivas" para a "revolução do proletariado", acima de tudo ocupado em apetrechar-se para, confortavelmente, poder ver a "Gabriela" sem estar a pensar na loiça suja e na roupa por lavar, passei o resto da revolução sossegado.
E epílogo? Dos colegas da faculdade e adjacências, alguns tornaram-se crónicos frequentadores de S. Bento, das empresas públicas, ou de capital público, do governo. Os amigos mais pessimistas e que me censuravam o optimismo, nas empresas privadas e no governo, juntamente com os "inimigos" de outrora. As parentas foram morrendo, geralmante conciliadas com o país; o sr. Gustavo também morreu, num cruzeiro, durante umas férias. O sr. Lopes é hoje, um potentado, e sensato, "éminence grise" de vários executivos municipais.
Eu continuo com o meu Cioran.
Tenho os números dos telemóveis de alguns dos sobreviventes, para uma aflição.
Sem comentários:
Enviar um comentário