Em "Um escritor confessa-se" Aquilino relata uma sua tentativa de evasão da cadeia em que estava detido. Tinha conseguido desaparafusar a velha fechadura do calabouço, mas, já fora da cela, as suas hesitações permitiram que fosse apanhado ainda antes de sair do recinto da esquadra.
O que se segue é o relato de uma conversa do escritor com um dos guardas.
Para completa compreensão do leitor se dirá que os guardas estavam no convencimento de que tudo se devera a um esquecimento - o que, depreendendo-se embora do texto, nunca será de mais vincar.
"-Sempre me pregou uma partida! Olhe que vou ter uma sindicância às costas!
- Não me diga, que me arranca o coração!
- O amigo, quando viu que eu lhe deixei a porta aberta, devia avisar-me. Meteu-se em copas. Não foi bonito, não foi!
- Só dei conta mais tarde, quando o senhor tinha acabado o plantão.
- Mas para que saiu cá para fora? Ganhava alguma coisa com isso? Ainda se ganhasse -e dizendo isto arrastou um olhar circular pelas quatro paredes do pátio (...).
- Apeteceu-me ir tomar ar ao pátio!...
- Pois não devia.A sua obrigação era, mal deu acordo que a porta estava aberta, chamar; se não a mim, ao meu colega, e avisar do descuido. A gente vem habituada lá da terra a nunca fechar as portas. Mas numa cai quem quer cai. Suponha que não havia muros, a cerca do Posto de Desinfecção, e lhe dava o demo para fugir hem?! Era a minha desgraça e sabe-se lá de quantos mais.
- Desculpe, eu ignorava de todos as consequências do meu acto irreflectido. Para outra vez, podem deixar a porta aberta que eu não arredo pé.
Foi-se a abanar a pobre cachola de estúpido, e eu volvi ao passeio(...)."
O que o Aquilino não se parece dar conta é quão demonstrativa é esta conversa da natureza do estado português: a exigência, aos cidadãos, de imperativos categóricos e todas as pragmáticas atenuantes para o estado, entre as quais a nossa conhecida "falta de meios" e as considerações humanitárias perante as ineficiências dos burocratas ou dos titulares dos cargos.
A situação, que já não era nova ao tempo do relato, mantém-se.
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