Leio, nestas horas da noite, os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rilke. Quantos anos passaram desde que os li pela primeira vez? Ou de uma das vezes que reli partes e de que me lembro ter sido num Verão? Anos, decénios. Nunca me esqueci, da primeira leitura, do médico português de Carlos o Temerário (o neto de D. João I, que dizia nós, os portugueses), mas creio que fundira numa só as essas e os esquifes de Cristoph Brigge e do avô de Hans Castorp.
Quando li, há pouco, o relato da agitação da grande morte do camareiro Brigge lembrei-me ainda da incroyable frivolité des mourants de que fala Proust uma das anotações que faz na véspera - creio que literalmente - da sua morte (aqui, no minuto 7).
Quando li, há pouco, o relato da agitação da grande morte do camareiro Brigge lembrei-me ainda da incroyable frivolité des mourants de que fala Proust uma das anotações que faz na véspera - creio que literalmente - da sua morte (aqui, no minuto 7).
Dos Cadernos a morte do camareiro, para verem como fui de Rilke a Proust: «No meu avô, o velho camareiro Brigge, ainda se notava que trazia dentro de si uma morte. E que morte! Evidenciou-se durante dois meses e tão alto que se ouvia lá fora, na quinta.
A ampla e antiga casa senhorial era demasiado pequena para esta morte; parecia que era preciso acrescentar-lhe novas alas, pois o corpo do camareiro tornava-se cada vez maior e continuamente queria ser transportado de um quarto para outro e enchia-se de uma cólera terrível quando o dia ainda não chegara ao fim e já não havia nenhum quarto onde ele ainda não estivesse estado deitado. Nessa altura procedia-se, com todo o séquito de criados, criadas e cães, que sempre tinha à sua volta, à subida das escadas e, com o mordomo à frente entrava-se no quarto onde morrera a sua santa mãe (...).Agora era invadido por toda aquela matilha» - Em Rilke as extravagâncias da morte são autoria dela, somos meros espectadores, entediados, divertidos ou irritados. Ao contrário, a frivolidade de que Proust fala, é-nos imputável, ou melhor, àquele que há-de chegar para se ocupar do nosso fim, e que, tocado já pela morte, hoje trataríamos como a um estranho que se portasse de um modo impertinente.
Usei a tradução de Maria Teresa Furtado, para a Relógio d'Água. Era emprestada a edição que li primeiro, do Paulo Quintela e, esgotada há muito, as releituras dela foram em fotocópias incómodas.
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