terça-feira, dezembro 09, 2008

Ontem vi, com surpresa, a notícia da morte do Alçada Baptista. Apenas estive com ele uma vez, em casa dos pais de amigos meus.
Gostei de o conhecer, era um bom conversador - como, creio, já não há muitos - a mulher não lhe ficava atrás e foi uma noite divertida.
Lembro-me de se falar sobre aquilo a que é uso chamar a singularidade portuguesa, de como ele dizia ser possível ter nascido na idade feudal e no decurso da sua vida ter passado pelas outras eras até à actual e do difícil que era explicar isso à gente mais nova (pensei, para comigo, que muita gente da minha geração, que é a dos filhos dele, ainda pode dizer o mesmo).
Creio que foi para ilustrar os costumes antigos, de que todos fôramos ainda testemunhas, que alguém terá falado nos pobres cá de casa, aqueles que pediam esmola em dias e horas certos, habitualidade que partilhavam com os outros fornecedores. Decerto já não havia desses pobres (de que, mais uma vez, ainda me lembrava, aqui de casa) mas, informaram os anfitriões, eles tinham - e diziam-no com algum conformado e quase bem disposto desânimo, um ladrão certo e quase privativo, de que eram as vítimas leais. E contaram as conversações trabalhosas para reaverem os bens deles roubados, algumas acções directas mais audaciosas, e os bons conselhos e auxílio que não conseguiam deixavam de dar ao seu ladrão quando este optava pela via mais legal do pedido.
Alçada ficou maravilhado com a história e fez disso o assunto de uma das suas crónicas, então muito lidas; achei simpático esse modo de agradecer a pousada, mas não deixei de lastimar que a conversa não tivesse decorrido sobre os tempos heróicos da Moraes e do Tempo e o Modo - embora soubesse muito bem que alguém como Alçada Baptista nunca contaria - mesmo se usasse um generosos tom de confidência - qualquer episódio que não pudesse, como aquela noite, conter-se numa prosa aprazível e publicável.
E isso é que, com a morte de pessoas como Alçada, porque tinham verdadeiramente o seu quê de outros tempos, se vai irremediavelmente perdendo: a perícia dificil do amável.

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